sábado, 12 de abril de 2025

Inclusão e Educação Especial, que caminhos para o futuro?

Chegou o momento de avaliar os resultados do actual paradigma da Educação Inclusiva (decreto-lei 54/2018 e decretos legislativos regionais 5/2023/A e 11/2020/M, com as suas posteriores alterações) e fazer opções políticas para o futuro. Pese embora as inúmeras diferenças existentes entre a situação concreta de cada escola/agrupamento em Portugal Continental, Açores ou Madeira, no que concerne à operacionalização deste modelo, partilharei aqui algumas reflexões de âmbito geral acompanhadas de possíveis alterações a introduzir, dando assim continuidade a dois artigos anteriormente editados: “Os pais da exclusão: o choque de civilizações” (Agosto de 2018) e “Repensar as políticas educativas da Inclusão” (Outubro de 2022).

I ― Do paradigma burocrático ao modelo da intervenção precoce e multidisciplinar. É urgente recentrar a maioria das decisões pedagógicas nas mãos dos professores e dos conselhos de turma. Assim, a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI), a Equipa Regional de Monitorização e Acompanhamento da Educação Inclusiva (ERMAEI) e o Centro de Apoio à Aprendizagem (CAA) deverão ser extintos, sendo os profissionais alocados a estas estruturas encaminhados para a questão da intervenção directa com os alunos.

Nesta sequência, será fundamental criar em cada escola/agrupamento uma Equipa Pedagógica multidisciplinar direccionada para a intervenção, logo após os primeiros indícios de dificuldades por parte de qualquer criança/jovem. Trata-se, reforce-se, de uma Equipa Pedagógica integralmente voltada para a intervenção directa/precoce e não para a definição de medidas educativas que outros agentes educativos terão de aplicar. Esta Equipa Pedagógica deverá estar ao serviço de todos os alunos da escola/agrupamento, que em qualquer momento revelem, entre outras possibilidades, dificuldades de aprendizagem, de integração…

Mas e os casos mais complexos? Os casos de alunos que apresentam Necessidades Educativas Especiais (devidamente identificadas) terão de usufruir de uma intervenção especializada. Além disso, a eventual adopção de medidas educativas mais restritivas (agora designadas de “adaptações curriculares significativas”), que comprometem o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, deverá partir de uma proposta do conselho de turma ao Conselho Executivo/Direcção, na sequência do fracasso das medidas educativas já implementadas (em estreita articulação com a Equipa Pedagógica), tendo em vista a sua posterior aprovação (ou não) por parte do Conselho Pedagógico (as restantes medidas, agora designadas “universais, selectivas e adicionais”, bem como as “adaptações ao processo de avaliação” deverão estar sob a alçada de cada professor/conselho de turma).

II ― Reconhecer o conceito de Necessidades Educativas Especiais. Abandonando o distópico modelo vigente que preconiza o fim das categorizações, sugere-se a recuperação do conceito de Necessidades Educativas Especiais, devendo, por conseguinte, a intervenção dos serviços especializados de Educação Especial ser direccionada, na maioria das situações, de um modo directo (e não em regime de consultoria), para estes alunos, com a duração e a intensidade compatíveis com o grau de severidade em causa, privilegiando o desenvolvimento de competências específicas e tomando em consideração a tipologia das respectivas Necessidades Educativas Especiais (de acordo com a classificação de Luís de Miranda Correia: intelectual, motora, comunicacional…). Será por acaso que o Júri Nacional de Exames insiste em utilizar estas classificações (categorizações), no âmbito da definição das adaptações a aplicar aquando da realização das provas e exames com carácter externo?

Por conseguinte, os diagnósticos não deverão continuar a ser globalmente amaldiçoados, pois estes poderão revelar-se decisivos para compreender melhor as dificuldades de cada criança/jovem e, nessa sequência, tornar a intervenção psicopedagógica mais eficaz. Além disso, também contribuem para que a/o criança/jovem se compreenda, progressivamente, melhor a si mesma/o (autoconhecimento). Ao contrário daquilo que escreveu David Rodrigues (“Educação Inclusiva: embrulho dos presentes envenenados”, Público, 28/2/2025), a categorização é frequentemente uma necessidade. De resto, como intervir adequadamente perante uma perturbação da aprendizagem específica ao nível da leitura e da escrita se não existir um prévio diagnóstico cientificamente validado?

Ao perseguir a ilusória tentação de colocar a Educação Especial ao serviço de todas as crianças e jovens, de preferência de um modo indirecto (consultoria) e durante um curto período de tempo, a legislação em vigor desprezou frequentemente os alunos com efectivas Necessidades Educativas Especiais, que não desapareceram, porquanto as Perturbações do Desenvolvimento Intelectual, as Perturbações do Espectro do Autismo, as dificuldades específicas de aprendizagem ao nível da leitura e da escrita, entre tantas outras complexas problemáticas, nomeadamente de ordem genética e neurológica, exigem uma intervenção especializada e sistemática, apesar de cada caso ser um caso e, por conseguinte, a evolução se processar com ritmos distintos.

III ― Desburocratizar. Dentro de cada escola/agrupamento, é fundamental simplificar procedimentos, canalizando todos os recursos para a questão central da intervenção (multidisciplinar) imediata, sem necessidade de preencher papéis. Doravante, as reuniões deverão centrar-se em torno dos modelos de intervenção psicopedagógica junto dos alunos e não tanto ao nível da definição de medidas teóricas, que posteriormente se revelam, na prática, para aqueles que mais precisam de ajuda, uma mão cheia de nada (gostaria sinceramente que algum especialista das Ciências da Educação me explicasse qual é a necessidade de ser a EMAEI a prescrever, num complexo e extenso Relatório Técnico-Pedagógico, a medida das “adaptações curriculares não significativas” quando essa decisão, entre outras, deveria estar dentro da alçada da autonomia científica e pedagógica de cada docente…).

IV ― “It takes a network to beat a network” (Stan McChrystal). Não é possível melhorar o actual sistema educativo sem repensar e investir no modelo de formação dos adultos e das famílias. Neste âmbito, as juntas de freguesia e outras instituições locais, articuladas com os centros de formação de adultos e com as universidades seniores, poderiam dar um contributo decisivo rumo ao desenvolvimento da literacia das populações. Fomentar a aprendizagem ao longo da vida junto dos pais/famílias teria um impacto decisivo junto dos mais jovens e das próximas gerações…

V ― Situações de iminente abandono escolar. No caso dos alunos que revelam sistemáticos e injustificados problemas de assiduidade, os mecanismos legais têm de funcionar, em tempo útil (refiro-me, desde logo, à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens). O que também significa responsabilizar as famílias e os respectivos educandos...

VI ― A escola e os currículos. A efectiva inclusão exige vias alternativas adequadas aos interesses e potencialidades de cada um dos alunos, nomeadamente de cariz mais prático e profissionalizante (o actual paradigma da Educação Inclusiva caminha num sentido inverso, eliminando por exemplo as Turmas com Projecto Curricular Adaptado, no caso dos Açores, e tornando quase impossível a aprovação de turmas de Percurso Curricular Alternativo, em Portugal Continental). Além disso, os currículos e os programas escolares encontram-se, grosso modo, desajustados e deverão ser repensados numa perspectiva global. Com as necessárias actualizações, os estádios de desenvolvimento de Jean Piaget poderão ajudar-nos bastante nesse trabalho. Finalmente, é fundamental criar respostas para os jovens com graves Necessidades Educativas Especiais após os 18 anos e que, na medida do possível, almejem ir para além da institucionalização.

VII ― Pré-requisitos para construir a inclusão. Aquilo que as escolas públicas necessitam não é de uma revolução ao nível do paradigma legislativo, mas de conhecimentos científicos/pedagógicos aprofundados e meios técnicos e humanos geridos de um modo democrático, o que implica, desde logo, falar em turmas reduzidas, a partir da Educação Pré-
-Escolar (12 alunos/crianças), e em equipas directivas eleitas pela comunidade escolar. Garantidos estes e outros pré-requisitos, os professores poderão implementar as medidas educativas necessárias para a inclusão (nomeadamente ao nível da diferenciação dos processos de ensino/avaliação) e o decorrente sucesso dos seus alunos (sem que isso exija preencher montanhas de papéis e desperdiçar horas em intermináveis e infrutíferas reuniões). A intervenção em tempo útil e cientificamente alicerçada é uma das chaves para a transformação do sistema educativo e é aí que continuamos a falhar, apesar de toda a parafernália de inúteis provas externas que os políticos insistem em inventar (Provas-Ensaio, Provas “ModA”, Provas Finais de ciclo, “Prova de diagnóstico da fluência leitora”, Provas “PISA”…).

Outrossim, a obrigatoriedade de transitar as crianças do 1.º ano para o 2.º ano (1.º ciclo) potencia a exclusão, porquanto não respeita o ritmo de aprendizagem de cada aluno e contribui para agravar as suas dificuldades. Em sentido mais geral, a tendência para garantir a todo o custo o “sucesso estatístico” alimenta um círculo vicioso de dificuldades, alheamento e extremismos, com consequências trágicas na vida destes futuros adultos e do próprio país.

VIII ― Para ensinar é preciso nunca parar de aprender. Para garantir uma efectiva formação contínua dos docentes, do ponto de vista científico e pedagógico, poderiam ser estabelecidos protocolos com as universidades (os actuais centros de formação de professores deveriam ser extintos ― e o mesmo deveria aplicar-se a alguns dos tentáculos do Ministério da Educação, como é o caso da designada Autonomia e Flexibilidade Curricular).

IX ― Os recursos tecnológicos. Os manuais escolares em suporte físico deveriam regressar imediatamente às escolas, sendo que as novas tecnologias terão de ser percepcionadas apenas como mais um dos recursos pedagógicos disponíveis, a utilizar de um modo crítico, intencional e consciente (o CHAT-GPT e a Inteligência Artificial não representam a panaceia para os nossos problemas educativos, nomeadamente no que diz respeito ao Ensino Básico e Secundário). Importa questionar até que ponto o obsessivo investimento nas novas tecnologias se ancora em efectivas preocupações de natureza pedagógica ou em outros interesses de alguns grupos financeiros…

X ― Outras respostas mais estruturadas e especializadas. À semelhança do que já sucede nos domínios da visão e da audição, seria importante equacionar a possibilidade de ter escolas de referência altamente especializadas em determinadas problemáticas mais complexas como sendo a Perturbação do Espectro do Autismo (grau de severidade grave) ― a existência de “unidades especializadas” nem sempre se revela uma resposta suficiente. A diversificação da oferta de respostas ao nível da intervenção educativa daria aos pais e às famílias maiores e melhores possibilidades para construir um futuro mais sustentado para os seus filhos. Recuperando as recentes palavras de Carlos Nunes Filipe: “A existência de ensino inclusivo em paralelo com estruturas diferenciadas de apoio de educação especial é a prática mais realista e a que, em muitos países, tem provado ter os melhores resultados” (“O ensino inclusivo não pode ser um dogma”, Público, 22/03/2025).

Como escreveram recentemente Rita Bonança e Beatriz Rodrigues, este “modelo de educação inclusiva não está apenas a falhar; está a comprometer o futuro de milhares de crianças e jovens” (“O presente envenenado na educação inclusiva”, Público, 24/2/2025). Assim, ao contrário daquilo que parece acreditar David Rodrigues, a inclusão não nasceu em Portugal com o decreto-lei 54/2018, pese embora a existência de alguns aspectos positivos que este diploma trouxe, mas que foram globalmente anulados pelo espírito global da lei (distópica e ambígua). Além disso, David Rodrigues parece não compreender que sem Educação Especial não há inclusão, embora, como é evidente, a inclusão tenha de ser um objectivo de todos e envolver os diversos domínios do saber (“Educação Inclusiva: embrulho dos presentes envenenados”, Público, 28/2/2025). Num artigo em que, paradoxalmente, se propôs “defender o trabalho que é feito nas escolas portuguesas”, David Rodrigues revelou um confrangedor desconhecimento da situação concreta que as escolas e os professores enfrentam. Talvez seja este, de resto, um dos grandes problemas de vários “especialistas” das Ciências da Educação (David Justino, com os seus erróneos cálculos divulgados num dos seus mais recentes estudos, é outro dos possíveis exemplos que por aí pululam: cf. “Afinal, escolas do 1.º ciclo com menos de 20 alunos serão cerca de 10%. David Justino admite erro”, Público, 28/2/2025).

Existem em Portugal, pelo menos, dois paradigmas distintos a respeito da Educação Inclusiva personalizados nas figuras de David Rodrigues e Luís de Miranda Correia. Fracassado o primeiro (David Rodrigues bem procura convencer-nos do contrário ou não fosse ele um dos grandes responsáveis pelo modelo vigente…), não terá chegado o momento de ouvir os profissionais que pisam, há décadas, o “chão das escolas” e de escutar, em particular, Luís de Miranda Correia, aquele que pode ser considerado um dos pais da Educação Especial em Portugal? Penso que teríamos todos a aprender. E a inclusão, enquanto princípio-chave das sociedades democráticas contemporâneas, poderia finalmente traduzir-se em actos concretos e não apenas numa amálgama de conceitos abstractos, porventura bem-intencionados, mas profundamente promotores da exclusão.

Renato Nunes

Nota: Artigo de opinião, recebido por correio eletrónico, que vincula exclusivamente o seu autor.

4 comentários:

Anónimo disse...

Onde podemos dar a nossa opinião relativamente a este artigo?

Anónimo disse...

Fico muito apreensiva com algumas opiniões partilhadas neste artigo. Concordo com alguns aspetos a melhorar na legislação, mas o grande problema na educação, traduz-se na dificuldade por parte de muitos professores ao nível da mudança de práticas, continuando a despejar conteúdos e de muitas EMAEIS prescreverem medidas sem articular devidamente com os intervenientes envolvidos.

Anónimo disse...

Pode manifestar-se nos comentários ou enviar para santos.jaml@gmail.com. Assim como publiquei a opinião deste colega, publicarei todas as restantes, uma vez que o blog prima pelos princípios da democraticidade e da livre opinião. Cumprimentos, João Santos

Kinitra disse...

Concordo com a aplicação do modelo de avaliação das necessidades específicas, de Luís Miranda Correia e com a revisão/melhoria do DL54/2018. Escola inclusiva implica mudança de práticas pedagógicas, entretanto assistimos à aplicação do modelo pendular, defendido por Maria do Céu Roldão...
Preocupa me o facto de não estar clarificado o papel do docente de educação especial, o qual continua a ser visto como docente de apoio educativo. É urgente definir as suas funções e que todo o corpo docente as compreenda de uma vez por todas. O/A docente de educação especial não é um/a explicador/a.