A retirada dos filhos de Carol Archangelo e Carlos Orleans levantou uma série de dúvidas sobre a forma de agir da CPCJ. Veja como atua a instituição e como garantir seus direitos.
1. Quem é responsável pelo processo de retirada da guarda de crianças?
Quando há consentimento dos pais ou daqueles que têm responsabilidade parental das crianças suspeitas de estarem em situação de risco, os processos são conduzidos pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). São estruturas locais da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens existentes nos municípios portugueses. Quando não há consentimento por parte dos pais ou do responsável parental, os processos são conduzidos pelo Tribunal de Família. No caso específico do casal de brasileiros, Carol Archangelo e Carlos Orleans, que perderam a guarda dos dois filhos, de 6 e 8 anos, ou eles falharam no acordado com a CPCJ ou não consentiram a intervenção do órgão.
2. Quem desencadeia o processo de avaliação do risco para as crianças?
Segundo o Relatório Anual de Avaliação de Atividade das CPCJ, em 2023 — o levantamento mais recente —, a maior parte das denúncias foi feita pelas forças de segurança, responsáveis por 22.788 (41,5%) de um total de 54.746 casos. A seguir, vieram os estabelecimentos de ensino, com 9.929 (18%); as denúncias anónimas, com 5.571(10,2%); os tribunais e o Ministério Público, com 4.635 (8,5%), os estabelecimentos de saúde, com 2.579 (4,7%), os próprios pais2.502 (4,5%), entre outros.
3. Quem tem a obrigação de denunciar maus tratos ou abusos demenores?
O artigo 242 do Código de Processo Penal português prevê que todos os funcionários públicos têm o dever de denunciar os crimes dos quais tomam conhecimento enquanto exercem suas funções, incluindo os de maus tratos a menores. Também os médicos, segundo o Artigo 44 do seu Código de Ética, devem tomar providências adequadas para proteger crianças vítimas de abusos ou maus tratos, alertando autoridades policiais ou instituições como a CPCJ.
4. Por que muitos casos de menores em risco são identificados em escolas?
Segundo a advogada Gabriela Tuler, que atua na área do Direito de Família, como os professores convivem mais tempo com as crianças, têm maior probabilidade de identificar sinais de maus tratos ou abusos. Segundo Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, os estabelecimentos de ensino têm profissionais capazes de identificar e sinalizar situações de risco.
Veja o que diz o Artigo 7º da Lei 147/1999 sobre as entidades com competência para intervir em matéria de infância e juventude:
1 - As entidades com competência em matéria de infância e juventude devem, no âmbito das suas atribuições, promover ações de prevenção primária e secundária, nomeadamente, mediante a definição de planos de ação local para a infância e juventude, visando a promoção, defesa e concretização dos direitos da criança e do jovem;
2 - As entidades com competência em matéria de infância e juventude devem promover e integrar parcerias e a elas recorrer, sempre que, pelas circunstâncias do caso, a sua intervenção isolada não se mostre adequada à efetiva promoção dos direitos e proteção da criança ou do jovem;
3 - A intervenção das entidades com competência em matéria de infância e juventude é efetuada de modo consensual com as pessoas de cujo consentimento dependeria a intervenção da comissão de proteção nos termos do artigo 9.º;
4 - Com vista à concretização das suas atribuições, cabe às entidades com competência em matéria de infância e juventude:
a) Avaliar, diagnosticar e intervir em situações de risco e perigo;
b) Implementar estratégias de intervenção necessárias e adequadas à diminuição ou erradicação dos fatores de risco;
c) Acompanhar a criança, jovem e respectiva família em execução de plano de intervenção defi nido pela própria entidade, ou emcolaboração com outras entidades congêneres;
d) Executar os atos materiais inerentes às medidas de promoção e proteção aplicadas pela comissão de proteção ou pelotribunal, de que sejam incumbidas, nos termos do acordo de promoção e proteção ou da decisão judicial.
5 - No exercício das competências conferidas no número anterior cabe às entidades com competência em matéria de infância e juventude elaborar e manter um registo atualizado, do qual conste a descrição sumária das diligências efetuadas e respectivos resultados.
5. Quais os principais sinais de que os menores se encontram em perigo?
A professora universitária Helena Raposo, com mais de 20 anos de ligação à formação de professores do ensino básico e educadores de infância, chama a atenção para sinais externos e comportamentais das situações de risco. Os externos incluem a presença de hematomas, ferimentos, marcas de agressões ou mesmo indicações de automutilação. Nos sinais comportamentais, os professores devem estar atentos a alterações no rendimento escolar, à falta de atenção, às modificações do estado de espírito, como, por exemplo, tristeza, agressividade no relacionamento com colegas, professores e funcionários e, também, perda de apetite, isolamento, reações adversas à aproximação de elementos da família ou outros adultos.
6. A CPCJ pode retirar uma criança ou um jovem do convívio familiar de um momento para o outro?
Isso depende do grau de risco que o menor enfrenta. Pode acontecer a retirada imediata, mas, normalmente, o processo é demorado. Habitualmente, após ser feita a sinalização, a CPCJ chama os pais para discutir a situação e propor um termo de ajustamento de conduta. Se a situação for grave ou se os pais não cumprirem o que foi determinado, o Ministério Público é chamado para que apresente o caso ao Tribunal de Família. No caso dos filhos de Carol Archangelo e Carlos de Orleans, que foram retirados do convívio familiar em 17 de março deste ano, a primeira sinalização foi feita em 2023.
7. Para onde são levadas as crianças cujos pais perderam a guarda?
Para instituições acolhedoras cadastradas pelo Estado, que, pelas tabelas de 2024, recebem, mensalmente, entre 1.100 e 3.300euros (R$ 6.600 mil e R$ 19.800) por criança. Mas um questionário realizado em 2023 pela Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, com jovens e familiares que tinham passado por casas de acolhimento, apontou uma visão negativa desses locais. Eles foram classificados como ineficazes para a resolução dos problemas dos menores de idade e alguns dos entrevistados classificaram as casas como “verdadeiras escolas de crime”. A incapacidade de estabelecer uma rotina diária e a ausência de regras foram apontadas como as principais razões para essa avaliação.
8. Os pais têm direito de defesa nos casos de perda da guarda dos filhos?
Todas as advogadas consultadas pelo PÚBLICO Brasil são unânimes: sempre que forem chamados pela CPCJ, os pais devem estar acompanhados de um advogado. Isso vai garantir que a CPCJ e os tribunais ajam de acordo com a lei, sem eventuais abusos, sempre prevalecendo o direito das crianças e dos jovens. Não pode, por exemplo, haver perseguição por parte de servidores públicos, sejam professores, sejam policiais, por conta da origem, da cor ou da condição sociais dos pais e das crianças, pois isso pode caracterizar xenofobia ou racismo. Nesses casos, os pais devem buscar a Justiça imediatamente e fazerem a denúncia.
9. E se a família não tiver condições financeiras para pagar um advogado?
Nessas situações, a Segurança Social se encarregará de oferecer um advogado oficioso para não deixar os pais desprotegidos, pois excessos por parte dos denunciantes e mesmo da Justiça podem acontecer. Conforme o rendimento da pessoa ou da família, a Segurança Social pode se responsabilizar por todos os custos judiciais e com advogados ou por um pagamento parcelado, segundo a capacidade financeira comprovada.
10. Existe diferença na forma de atuação entre as autoridades portuguesas e as brasileiras em relação a crianças em situação de risco?
Sim. A advogada Catarina Zuccaro afirma que, no Brasil, a ênfase maior das autoridades está na situação socioeconómica, já em Portugal, a atenção é para a psicossocial. Diz a legislação que uma criança está em perigo quando: vive entregue a si própria; sofre maus-tratos ou é vítima de abusos sexuais; não recebe cuidados e afeto adequados à idade; está entregue a terceiros e os pais não desempenham o seu papel; é obrigada a trabalhos inadequados e que comprometam a sua formação; está exposta a comportamentos que afetem a sua segurança ou equilíbrio emocional; assume comportamentos ou consumos perigosos sem que os pais intervenham. No Brasil, a preocupação é se a criança se alimenta bem, tem boas condições para morar, não está sofrendo violência física.
Fonte: Público por indicação de Livresco