quarta-feira, 16 de agosto de 2023

"A crise da falta de professores não pode ser resolvida à custa da qualidade"

Assunção Flores, diretora do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) e professora do Instituto de Educação da Universidade do Minho, tornou-se em julho a primeira portuguesa a receber o prémio de carreira da Associação Internacional de Estudos sobre os Professores e o Ensino (ISATT). Chama-se Prémio ST²AR (Service to Teachers, Teaching, the Academy and Research). O júri internacional reconheceu o seu "percurso exemplar" e os seus contributos no âmbito do trabalho docente e da formação de professores. Em entrevista ao DN, Assunção Flores analisa a crise da falta de professores que se vive nas escolas portuguesas e aponta soluções.

Antes deste prémio carreira recebido em Itália, já em 2021 foi reconhecida na terceira edição do livro Mulheres na Ciência, publicado pela agência nacional Ciência Viva, que destaca as mulheres mais influentes no panorama da Ciência em Portugal. Também em 2021, foi considerada uma das cientistas mais influentes do mundo ("World"s Top 2% Scientists 2021") segundo um estudo da Elsevier e da Universidade de Stanford (EUA). Este reconhecimento é também demonstrativo da importância da educação na sociedade?
Em certa medida. A Educação constitui um dos pilares fundamentais da sociedade, mas nem sempre tem recebido a atenção que lhe é devida. Este reconhecimento que refere é, sem dúvida, um contributo para a afirmação da ciência que se faz em Portugal na área da Educação. Sinto-me honrada com estas distinções, mas considero que o mais importante é o facto de se falar de Portugal lá fora e de se dar destaque à área da Educação que é, por vezes, vista como o parente pobre quando comparada com outras áreas que têm tido maior destaque. Sendo consensual a sua importância para o desenvolvimento dos países, a Educação nem sempre é objeto de atenção do ponto de vista político e de investimento na investigação neste domínio.

Em 1994 começou a exercer funções na formação de professores na Universidade do Minho. Nestes quase 30 anos, o que mudou para melhor e o que se deteriorou?
Sim, efetivamente sou formadora de professores desde 1994 e também investigadora nesta área desde essa altura. Lembro-me muito bem dessa fase de expansão e consolidação da formação de professores, dos anfiteatros com centenas de alunos, o que contrasta com a situação atual se tivermos em conta o número reduzido de estudantes nos mestrados em ensino. Este cenário é crítico face ao problema da falta de professores no nosso país. Tem havido alguma inflexão, mas o número de estudantes dos mestrados em ensino está longe de responder às necessidades atuais e futuras da profissão docente. Respondendo à sua pergunta, nestas quase três décadas de experiência enquanto formadora de professores, posso dizer que houve uma evolução positiva no que se refere ao desenvolvimento e consolidação de modelos de formação que assentam numa vertente investigativa que é visível na produção científica e na experiência acumuladas neste campo. Contudo, há, sem dúvida, aspetos que precisam de ser melhorados.

Que aspetos são esses?
A implementação do processo de Bolonha em 2007 implicou a alteração dos cursos de formação de professores, tendo-se adotado o modelo consecutivo, isto é, um modelo bietápico que inclui uma licenciatura numa determinada área do conhecimento (por exemplo, em História) a que se segue um mestrado em ensino de História, no caso, por exemplo, dos alunos que pretendem lecionar no 3º ciclo do ensino básico e no ensino secundário. Ora, este modelo organizacional e curricular implica a separação entre a área das ciências da especialidade e a área das ciências da educação, tendo tido ainda como consequência a redução do tempo de estágio. Antes do processo de Bolonha, se considerarmos, por exemplo, o modelo integrado que incluía quatro anos de formação na universidade e um ano de estágio na escola, a chamada Licenciatura em Ensino, que foi a formação que eu também fiz, a integração das várias componentes de formação desenvolvia-se de outro modo e noutro tempo, sobretudo ao nível da formação da identidade profissional do professor. Reconhecendo que as instituições têm feito um trabalho relevante no contexto pós-Bolonha, nomeadamente pela adoção de um modelo baseado na indagação, já que a formação inicial de professores se situa agora ao nível do mestrado, julgo que é fundamental investir numa maior articulação entre as universidades e as escolas. A qualificação profissional ao nível de mestrado é um aspeto importante, mas é necessário revisitar o desenho curricular e organizativo da formação de professores e investir na melhoria das condições de trabalho dos formadores de professores e dos professores cooperantes, na explicitação e valorização do seu estatuto e da sua função, na articulação entre instituições dos diferentes níveis de educação e ensino - educação pré-escolar e ensinos básico e secundário - e instituições de ensino superior, assim como na criação de um "terceiro espaço" que fortaleça o profissionalismo docente e a consolidação da formação dos professores numa lógica mais colaborativa.

E o que se pode fazer para atrair jovens para a profissão docente?
Desde logo, é fundamental afirmar que vale a pena ser professor, que é uma profissão nobre e fundamental para o desenvolvimento do país. Eu não escolheria outra profissão, gosto muito de fazer investigação, mas ensino constitui o âmago da minha identidade profissional. Na minha opinião, é fundamental um esforço coletivo no sentido de melhorar a imagem social da profissão docente e isso constitui uma responsabilidade de todos: dos políticos, certamente, mas também dos professores, dos diretores, dos formadores de professores e das instituições de formação, e ainda dos meios de comunicação social. Há muitos aspetos a melhorar no ensino, mas há também experiências e projetos muito positivos e interessantes que é importante divulgar. Um tema recorrente é a falta de atratividade da profissão e esse é um fator central ao qual urge atender e que implica naturalmente melhorar as condições de exercício da profissão, reduzindo a componente burocrática e administrativa, que representa um desvio daquilo que é o foco principal do trabalho dos professores: ensinar. A intensificação do trabalho docente tem-se vindo a acentuar precisamente devido à crescente burocratização do ensino, e importa valorizar dimensões centrais como a autonomia profissional e a confiança no trabalho dos professores. Há um aspeto que me parece crucial para atrair mais jovens professores que é a indução profissional, que, estando prevista na legislação desde 1989, nunca foi regulamentada. Trata-se do apoio e socialização profissional dos novos professores, após a formação inicial, e que existe noutros países, reconhecendo também que eles trazem um contributo importante para a dinâmica e o desenvolvimento das escolas. O modo como se acolhem os novos profissionais diz muito sobre a profissão e este é, do meu ponto de vista, um aspeto ao qual é necessário dar atenção.

Concorda com as alterações às habilitações mínimas para a docência?
Na minha opinião, devem-se evitar decisões precipitadas, simplistas e redutoras que representam um retrocesso em relação àquilo que se conhece sobre o processo de aprender a ensinar e sobre a formação de professores do ponto de vista da investigação neste domínio. Para se ser professor é necessário adquirir o conhecimento profissional de que falei há pouco, o conhecimento da disciplina, da pedagogia, da filosofia e da história da educação, da sociologia e do currículo, etc. assim como um conjunto de competências profissionais, por exemplo, planificar aulas, gerir um conjunto de alunos, avaliar as aprendizagens, etc. Mas é também importante considerar a dimensão ética, social e cultural do ensino. Se se pretende valorizar a profissão docente, então não faz sentido reduzir e simplificar a formação e as condições de acesso à profissão. É evidente que a crise da falta de professores e a necessidade de resolver a questão da quantidade pode implicar medidas temporárias para colmatar esta situação, mas isso não pode ser feito à custa da qualidade. Se atendermos à situação de outros países, por exemplo Inglaterra e Holanda, é imperioso analisar as implicações que uma simplificação excessiva das condições de acesso à profissão representa e que tem conduzido à desqualificação e desprofissionalização dos professores, e que é um risco que não devemos correr. As crianças e os jovens nas nossas escolas precisam de professores qualificados e motivados. Se olharmos para aquilo que se conhece de sistemas bem-sucedidos como a Finlândia, Singapura e Canadá, o movimento vai precisamente no sentido do recrutamento dos candidatos mais capazes, da valorização do estatuto socioeconómico e das condições de exercício da profissão e de uma formação de qualidade e de nível superior. Assim, a aposta não deve ser numa formação de professores de emergência, mas na procura de soluções de longo prazo, investindo na qualidade da formação sobretudo em momentos críticos como este, pois os problemas da quantidade resolvem-se melhor centrando a atenção na qualidade da formação, o que requer o envolvimento e a participação das instituições de formação, dos investigadores e dos formadores de professores.

O braço de ferro entre Ministério da Educação e os professores arrasta-se há muito. O que pode desbloquear o momento atual?
Eu penso que é necessário um esforço coletivo. A educação é fundamental para o desenvolvimento do país e a manutenção de uma situação de instabilidade e de incerteza tem sobretudo consequências para as crianças e para os jovens que têm direito a uma educação de qualidade. A verdade é que o setor da educação tem vivido tempos conturbados e exigentes e eu não resisto a citar Andy Hargreaves que, há 20 anos, falou de uma crise de proporções preocupantes, na medida em que a profissão que é, muitas vezes, descrita com uma importância vital para a economia do conhecimento é a mesma que muitos grupos têm desvalorizado, que cada vez maior número de pessoas quer deixar, em que cada vez menos pessoas querem entrar. Esta asserção permanece atual e não estou apenas a referir-me aos aspetos conjunturais que têm acentuado este cenário, mas também aos elementos estruturais aos quais é necessário atender.

As reivindicações dos professores são legítimas?
É fundamental que os professores estejam motivados e, para isso, concorrem naturalmente as questões laborais, nomeadamente as questões da carreira e do estatuto socioeconómico. O bem-estar dos alunos depende do bem-estar dos professores e, por isso, é crucial atender às condições de exercício da profissão e reconhecer a complexidade e exigência do ensino. Como refere Labaree, o ensino (e, por extensão, aprender a ensinar) constitui uma forma extraordinariamente difícil de prática profissional que parece fácil. É, portanto, necessário reconhecer e valorizar o trabalho dos professores. Na minha opinião, a profissão docente encontra-se numa situação crítica, eu diria mesmo numa encruzilhada, que requer respostas concertadas e urgentes, o que claramente tem de passar pelo desenvolvimento de medidas políticas que concorram para aumentar a sua atratividade e pelo investimento numa formação de qualidade assente na investigação e no conhecimento produzido internacionalmente e em particular no nosso país. Fala-se muito do envelhecimento do corpo docente, mas é necessário destacar que temos no nosso sistema professores altamente qualificados e experientes sendo fundamental reconhecer o seu papel na sociedade. Todavia, penso que é também importante refletir, para além das questões laborais, sobre as questões profissionais, por exemplo sobre a natureza do profissionalismo docente, sobre as práticas pedagógicas, sobre o trabalho colaborativo, sobre o papel dos professores enquanto agentes do currículo, enfim, sobre a especificidade da profissão docente.

Numa altura em que a falta de docentes é cada vez mais problemática, que medidas deveria implementar a Tutela para resolver a escassez de professores?
Efetivamente e à semelhança de outros países, Portugal enfrenta uma grave crise no que se refere à falta de professores, um fenómeno que não é novo, mas é persistente. O diagnóstico não é recente, basta olhar para os documentos produzidos no âmbito do Conselho Nacional de Educação (CNE), pelo menos desde 2016, em que já se chamava a atenção para o envelhecimento do corpo docente e se destacava a desvalorização social da profissão. Esta situação foi também destacada no último relatório TALIS que apontava para uma mudança dramática quanto ao número de professores com 50 anos ou mais em Portugal: de 28% no TALIS 2013 para 47% no TALIS 2018. No último Estado da Educação, publicado pelo CNE, é referido que, em 2020/2021, 55% dos professores tinham 50 ou mais anos de idade. Sabemos que, de acordo com os dados oficiais, no Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de Nunes et al., divulgado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, em 2021, será necessário recrutar em média 3.450 novos docentes por ano até 2030/2031, sendo que as necessidades cumulativas de recrutamento nesse período correspondem a 34.508 novos docentes. O mesmo estudo aponta que, em termos absolutos, a Área Metropolitana de Lisboa e a Área Metropolitana do Porto são as regiões que apresentam uma maior necessidade de recrutamento. Como sabemos, é um problema que se manifesta noutros países europeus, por exemplo na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, na Suécia, em França, na Itália, mas também nos EUA. A UNESCO já fez "soar o alarme sobre a crise global da falta de professores" relatando que serão precisos 69 milhões de professores para atingir a educação básica universal até 2030. Em Portugal, o envelhecimento do corpo docente e as aposentações em massa, a par da diminuição de candidatos a cursos de formação inicial de professores em instituições de ensino superior, contribuem para acentuar esta crise no setor. A falta de atratividade da profissão, ligada à intensificação e burocratização do trabalho docente, mas também à diminuição do estatuto socioeconómico, à desvalorização social e a uma imagem negativa da profissão que é frequentemente transmitida são fatores que acentuam o cansaço dos professores e afastam candidatos a professor. A profissão docente necessita de mais investimento e de mais atenção não só em termos materiais, mas também em termos de reconhecimento público. Sabemos que os baixos salários, a qualidade da formação, as condições de trabalho precárias, o volume de trabalho excessivo, a performatividade têm sido identificados como fatores críticos que levam os professores a abandonar a profissão ou a decidir não entrar nela. É fundamental mudar o discurso dominante sobre o ensino e aqui reitero a importância do esforço coletivo na alteração da imagem negativa, mas é, sem dúvida, necessário desenvolver um conjunto de medidas para atrair mais candidatos para cursos de formação inicial de professores, por exemplo, concedendo bolsas, melhorando as condições de exercício da profissão reduzindo o volume de trabalho sobretudo no que diz respeito às tarefas de natureza burocrático-administrativa, promovendo políticas de recrutamento consequentes e eficazes e criando condições para a entrada de mais candidatos reforçando os recursos humanos nas instituições de ensino superior, pois o envelhecimento que se verifica na profissão docente é também visível nos formadores de professores.

Fonte: DN

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