terça-feira, 15 de agosto de 2017

Quando um jovem decide deixar de viver

Antes de entrarem na estação de Braço de Prata, em Lisboa, os comboios descrevem uma pequena curva. Quem está na plataforma pode vê-los surgir, a uma centena de metros, como se brotassem das entranhas da Terra. Quase todos desaparecem na outra ponta do horizonte de forma tão rápida como apareceram – são Intercidades e Alfas Pendulares que seguem para a Gare do Oriente.

Naquele início de tarde tórrido de maio, Bruna saiu da escola à hora de almoço, meteu-se por um atalho de terra batida e, em poucos minutos, chegou à linha de caminho de ferro. Quando o maquinista entrou na curva, viu-a no meio da via, caminhando de forma aparentemente descontraída e desligada do mundo, de costas para o comboio. Naqueles breves segundos, em que travou a fundo, vários passageiros aperceberam-se do que estava prestes a acontecer. Entraram todos em pânico, ficaram depois em estado de choque. Não havia como evitar o pior.

A menina de 14 anos teve morte imediata. A polícia chegaria depois para recolher o seu corpo, na zona da curva traiçoeira, bem como os ténis e a mochila da escola, abandonados ao lado da linha. Nessa altura, ainda não sabiam – não podiam saber –, que aquela tragédia estava longe de ter sido um acidente. Bruna tinha decidido morrer assim.

A MALDITA BALEIA AZUL

As marcas de automutilação no seu corpo, bem como as informações recolhidas posteriormente pelas autoridades junto da família e de amigos, levaram a classificar a sua morte como suicídio – e como o primeiro caso fatal devido ao “jogo” Baleia Azul, tal como viria a ser revelado no programa Sexta às 9, da RTP. O inquérito à sua morte, tal como todos os que estão sob investigação relacionados com o fenómeno do chamado “jogo da morte”, está nas mãos da Unidade de Combate ao Crime Informático da Polícia Judiciária e da Direção Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), por determinação da procuradora-geral da República. Estavam em investigação cerca de 20 casos em maio mas, neste momento, o Ministério Público e a PJ, contactados pela VISÃO, preferem não adiantar quaisquer pormenores sobre a evolução da situação.

Bruna estaria deprimida, já tinha tentado suicidar-se antes e, por esse motivo, uma familiar próxima tinha-a levado às urgências do Hospital D. Estefânia, alguns dias antes. Medicaram-na com tranquilizantes e enviaram-na para casa, com uma carta dirigida ao médico de família, para que este a referisse para ser mais tarde atendida nos serviços de Pedopsiquiatria. Os seus problemas familiares eram conhecidos na escola e na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco da sua área de residência, onde estava referenciada desde fevereiro.

A CADEIRA VAZIA

Naquele 15 de maio, Bruna tinha ido à aula de Português. Desde então, e até ao último dia de aulas, na semana passada, a sua professora não conseguia deixar de olhar para a sua cadeira vazia com um misto de tristeza e inquietação.

“Quando há um aluno que vem à escola de manhã e de tarde se suicida, o mundo fica do avesso e o professor questiona a sua função e, pior ainda, questiona-se a si próprio”, diz Carmo Machado. Até porque esta não era a primeira aluna da Secundária D. Dinis a acabar com a sua vida neste ano letivo. Foi a terceira. Três mortes em sequência, que ocorreram da mesma forma, nas linhas de comboio da zona de Lisboa, em três meses seguidos.

Em março, Tiago, de 16 anos, a frequentar o 11º ano, atirou-se para a frente de um comboio depois de deixar uma longa carta à mãe, onde explicava que a sua decisão não era culpa dela, nem de ninguém. Ele simplesmente não gostava de si e da sua imagem. Sonhava ser modelo mas tinha uma deformação no rosto devido a um problema de saúde, acreditava que só iria piorar com a idade, e não queria viver assim.

Em abril, Tiago, de 17 anos, no 12º ano na área de Economia, pôs termo à vida na mesma linha férrea. As autoridades policiais ainda consideraram a hipótese de poder ter sido sugado para a linha devido à velocidade a que o comboio circulava, mas tudo indica que se atirou devido à depressão que sofria, sendo acompanhado por um psiquiatra. Também ele terá deixado uma nota suicida à família, segundo os seus amigos.

“Cada vez mais me convenço de que a primeira tarefa de um professor é trabalhar a relação humana com os seus alunos, mostrar-lhes novas perspetivas de vida, deixar uma semente de mudança em alunos que dela necessitam avidamente. Jovens adolescentes a quem, por vezes, falta quase tudo: famílias estruturadas, ambientes propícios à aprendizagem e à curiosidade para aprender, autoestima, autoconfiança e até comida...”, refere Carmo Machado.

E a escola, sabe-o bem, pode ser um lugar de grande solidão. “No meio de centenas de jovens barulhentos, há sempre um silêncio intransponível dentro de alguns. Quantas vezes, numa aula em frente a três dezenas de seres fervilhantes de vida, de sonhos e de mágoas, não me senti impotente para conseguir chegar a todos? Quantas vezes não me apeteceu simplesmente ignorar o programa? Destruir o manual? Sair da sala com eles para as ruas da cidade? Explicar-lhes que a vida é dura e difícil, injusta muitas vezes, implica ganhos e perdas, mas vale a pena ser vivida até ao fim. Sem batota.”

O QUE FAZER?

Formalmente, não existem diretivas do Ministério da Educação sobre a forma como os professores, ou as escolas, devem agir em casos de suicídio. Cada instituição atua em função dos meios que dispõe e, claro, da sensibilidade das direções. A Direção-Geral de Educação, em resposta (...), esclarece apenas são promovidas ações de “Promoção da Saúde Mental” ao longo do ano em várias escolas, em articulação com a Direção-Geral de Saúde, e que "nos casos de depressão ou da manifestação de qualquer outra sintomatologia no âmbito da saúde mental, o psicólogo escolar deve avaliar a situação e, se necessário, articular com os serviços de saúde competentes”. No caso da D. Dinis, há um psicólogo (da área educativa, não clínica) para cerca de mil alunos.

A VISÃO sabe que, apesar do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio 2013-2017 destacar as escolas como um terreno privilegiado de ação, não foram disponibilizados meios adicionais para a D. Dinis lidar com a morte destes três alunos. Foi apenas recomendado um reforço das interações entre a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, a Administração Regional de Saúde e a Santa Casa da Misericórdia, que já colaboram usualmente com a escola, acompanhando situações previamente sinalizadas.

A direção da D. Dinis (que preferiu não prestar declarações) decidiu promover, embora sem saber se da forma mais correta, encontros com pais e professores para abordar o tema. A PSP, através do programa Escola Segura, reforçou as ações de prevenção junto dos estudantes. E também psicólogos do programa +Contigo, desenvolvido pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, foram convidados a deslocarem-se a Chelas pelo corpo diretivo. Inicialmente, focaram-se na sensibilização dos professores, para que pudessem identificar sinais de alerta nos alunos: tristeza, isolamento, alteração nos padrões de rendimento escolar, desinteresse geral por todas as atividades, comportamentos violentos e impulsivos, entre outros. O trabalho será retomado em setembro, agora junto dos alunos. E, mais uma vez, pro bono. As verbas que este programa recebia da Direção-Geral de Saúde foram “cativadas” e, desde há dois anos, não há financiamento.

TEMA NÃO DEVE SER TABU

O enfermeiro José Carlos Santos, fundador do +Contigo em 2009, confirma as dificuldades financeiras, embora garanta que, devido à “generosidade” da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra e da Administração Regional de Saúde do Centro, o programa continue a funcionar a nível nacional, tendo envolvido, só este ano, cerca de 6400 alunos, do Algarve aos Açores. Sobre a intervenção prevista na escola de Lisboa, e sem querer adiantar pormenores, reconhece apenas que o caso é raro no panorama nacional, pelo facto de terem sucedido três suicídios em sequência, mas que o desespero que revela é, entre os jovens, cada vez mais usual.

“No último ano, o aumento de comportamentos autolesivos e suicídios foi muito evidente”, revela, preocupado. Por isso não se cansa de repetir que, sempre que há uma situação detetada numa escola, “não se deve negar o acontecimento” ou fingir que ele não sucedeu. “É um problema grave e, sem uma rápida intervenção, há sérios riscos de fenómenos de imitação.”

Falar sobre o assunto, garante, não é desaconselhado – muito pelo contrário. “Este tema não pode ser tabu, tem de se trabalhar o luto, resolver as questões da culpa e não permitir que se glorifique o que fizeram, entendendo-os como atos de coragem.” Um jovem que se suicida, recorda, “está numa situação de grande sofrimento” e “quase sempre existem questões do foro mental associadas”. Há uma vulnerabilidade crescente nas raparigas, nota, e os alunos do 10º ano têm demonstrado maiores níveis de depressão. Já não é possível ajudar os que morreram, mas há muitos à espera de um sinal de atenção, nas contracurvas da vida.

Reportagem publicada na VISÃO 1272 de 20 de julho

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