Segundo um artigo de Andreia Sanches, um estudo recente que avaliou mais de 92 mil alunos do 2.º ano do ensino básico revela que cerca de um quarto das crianças apresenta dificuldades de leitura. O mesmo estudo indica que os rapazes obtêm resultados superiores às raparigas e que os alunos das escolas privadas têm desempenhos melhores do que os das escolas públicas. Estes dados, porém, exigem uma leitura cuidada, pois refletem realidades educativas, sociais e estruturais que vão muito além da performance imediata dos alunos.
A perceção de que os rapazes são melhores na leitura não corresponde ao que a investigação internacional revela: de forma consistente, as raparigas superam os rapazes na competência leitora. As diferenças encontradas no estudo podem resultar de fatores como preconceito de género na avaliação, maior encaminhamento de rapazes devido a comportamentos perturbadores ou ainda práticas educativas que favorecem determinados perfis de desempenho. Outro fator possível é a recente transição dos testes em papel para formatos digitais, que alguns estudos sugerem poder beneficiar os rapazes em determinadas tarefas, alterando assim os padrões habituais de desempenho.
Também a diferença entre escolas públicas e privadas não deve ser interpretada de forma linear. A investigação mostra que uma parte importante do desempenho mais elevado nas escolas privadas resulta da composição social mais favorecida do seu corpo discente. Alunos provenientes de contextos socioeconómicos mais elevados tendem, por razões multifatoriais, a apresentar melhores resultados escolares, independentemente da eficácia pedagógica da escola que frequentam. Assim, a homogeneidade social mais elevada das escolas privadas contribui para elevar os seus resultados médios. Isto significa que, em muitos casos, mesmo que a sua eficácia pedagógica não seja superior à das escolas públicas, os alunos das escolas privadas continuam a apresentar desempenhos elevados devido às condições socioeconómicas e culturais de origem.
Um outro fator a considerar é o de que uma parte significativa das dificuldades de leitura observadas no estudo pode relacionar-se com as dificuldades de aprendizagem específicas (DAE). Estas desordens de origem neurobiológica são permanentes e afetam cerca de 15% das crianças em idade escolar, atingindo 5% nos casos mais severos, o que corresponde, no nosso país, a cerca de 50 mil alunos. As DAE afetam o processamento da informação, interferindo na receção, integração e expressão de estímulos visuais, auditivos, linguísticos ou motores. A literatura é clara: quanto mais precoce for a identificação — idealmente no final do 1.º ou 2.º ano— mais eficaz é a intervenção, podendo permitir que 75 a 90% destes alunos atinjam níveis de sucesso idênticos aos dos colegas sem DAE.
A falta de recursos especializados, a formação limitada de docentes e outros agentes educativos, lacunas legislativas e a perceção insuficiente de alguns pais sobre a relevância destas intervenções reforçam esta vulnerabilidade. As dificuldades de leitura nos primeiros anos tendem a condicionar a aprendizagem em todas as disciplinas, afetar a autoestima e a motivação e limitar oportunidades académicas e profissionais futuras.
Neste contexto, os resultados do estudo não surpreendem. Revelam tanto a iniquidade do sistema como a incapacidade estrutural de garantir respostas eficazes e equitativas. A leitura é muito mais do que um indicador escolar: é a base para o desenvolvimento intelectual e cívico. Garantir que todas as crianças aprendem a ler bem, no tempo certo, é uma responsabilidade coletiva — e urgente. O país não pode continuar a aceitar que dezenas de milhares de crianças vejam o seu potencial comprometido por falhas evitáveis do sistema.
Luís de Miranda Correia
Fonte: Público em acesso livre
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