quinta-feira, 15 de outubro de 2020

"Os adolescentes precisam de amor firme, autonomia e responsabilidade"

Quem o diz é Margarida Gaspar de Matos, psicóloga clínica, psicoterapeuta e professora catedrática da Universidade de Lisboa, que acaba de lançar o livro Adolescentes: As Suas Vidas, o Seu Futuro, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Neste livro, que traça o retrato dos adolescentes do presente - e através do qual ficamos a saber que os nossos, hoje, fumam menos, bebem menos, lutam menos e fazem sexo mais tarde do que os de há 20 anos -, lembra os do passado e reflete sobre os do futuro, encontramos também muitas pistas e caminhos para vivermos melhor com estes seres que de repente entram num processo de transformação do qual parece que não há meio de saírem.

Escrito para pais, professores e técnicos, a autora - que coordena vários grupos de investigação na área da adolescência e da saúde mental - teria curiosidade em perceber o que os adolescentes que o lessem pensam. Porque é isso que tem feito ao longo da sua carreira: ouvir o que eles têm para dizer.

Há 22 anos que se realiza em Portugal o estudo HBSC (Health Behavior in School-Aged Children), da Organização Mundial da Saúde, de que é coordenadora. Parece que as notícias são boas relativamente aos comportamentos dos adolescentes portugueses. Que grandes diferenças se observam?
De facto, há 22 anos que fazemos este estudo, em Portugal. De quatro em quatro anos, vamos para o terreno e fazemos recolha aleatória de participantes dos 6.º, 8.º e 10.º anos e, em 2018, também do 12.º. São amostras representativas destas idades e a evolução é muito interessante e dá-nos confiança nos dados, porque tem lógica, é paulatina, faz sentido com os acontecimentos societais pelos quais os jovens têm passado e permite-nos contar uma história.

Que história é essa?
Basicamente, a história é que a partir de 2002, ano "sombrio" do ponto de vista da saúde dos adolescentes portugueses, os indicadores de saúde e de bem-estar têm vindo a melhorar em Portugal como em toda a Europa. Algum retrocesso após a recessão (no estudo de 2014) que impactou sobretudo na menor perceção de bem-estar e no desinvestimento na expectativa de entrada no ensino superior. Os adolescentes portugueses estão em geral na média europeia, privilegiados no consumo de fruta e no hábito de tomar o pequeno-almoço, e bastante mal colocados na sua relação com a escola, tanto do ponto de vista académico como da gestão do stress associado. Estão também muito "em baixo" na prática de atividade física, sobretudo as meninas mais velhas.

E que retrato, sinteticamente, é que o relatório de 2018 faz dos adolescentes portugueses?
Em termos europeus, o consumo de tabaco e os comportamentos de bullying têm vindo a descer desde 2002, o que sugere que vale a pena o investimento das políticas públicas que se têm focado nestes temas (o bullying, mas não as lutas). Com a idade, do 6.º ao 12.º ano, os indicadores de saúde e de bem-estar pioram... E o grande desafio é ajudar a crescer sem deterioração desta situação. As meninas e os rapazes continuam a apresentar diferenças. Os rapazes com mais tendência ao consumo de substâncias, violência, acidentes, lesões, e em geral mais afastados da escola, mas mais otimistas e bem-dispostos com a vida e a praticar mais atividade física. As meninas com mais sintomas físicos e psicológicos de mal-estar, maior investimento na escola, mas em geral piores indicadores de perceção de bem-estar. O insucesso escolar aparece associado a uma pior perceção de saúde física e psicológica, bem como em geral as condições crónicas de saúde que afetam a participação na escola. As vulnerabilidades nas condições socioeconómicas impactam negativamente na perceção de saúde e de bem-estar.

A evolução acaba também, no entanto, por mostrar o papel fundamental da escola. A criação de programas de sensibilização contra o bullying, a violência, os consumos de álcool, tabaco e drogas, assim como a educação para a saúde e a sexualidade, tudo temas incluídos na Educação para a Cidadania, que recentemente sofreu uma tentativa de boicote, têm sido importantes na mudança de chip dos miúdos?
Sim, é na escola que eles passam a maior parte da vida. Até 2018, não estavam lá muito contentes com a escola - os recreios ainda vá, mas com a cantina e as aulas em si estavam muito insatisfeitos. Vamos ver como é que o período de confinamento vai refletir-se nesse aspeto no próximo relatório em 2021. A escola não pode ser chamada a resolver todos os problemas, porque também existe para ensinar conteúdos académicos. Em 2005, estive envolvida num grupo de trabalho do Ministério da Educação para criar o currículo de Educação para a Saúde, que permitia aos jovens, além de aprenderem matéria, aprenderem a viver e desenvolverem projetos de cidadania ativa. Isto provavelmente contribuiu muito para a evolução positiva das escolas portuguesas. Depois, com a recessão, também houve uma recessão dessa área de trabalho-projeto e as componentes académicas voltaram a ser reforçadas, o que, quanto a mim, foi desastroso, porque não queremos crianças infelizes e boas a matemática, há que encontrar um equilíbrio entre a aprendizagem e o bem-estar.

Como é que se encontra esse equilíbrio?
Quando os alunos não aprendem, temos de ver qual é o problema, se é com a matéria ou se é com a maneira como é ministrada. Temos de diversificar e esse é o papel do professor, encontrar estratégias pedagógicas alternativas e não dar sempre mais do mesmo, que é um burnout, um verdadeiro KO técnico.

O período de confinamento e de ensino à distância poderá ser um ponto de partida para uma reflexão sobre estratégias pedagógicas alternativas?
Durante a pandemia, fizemos uma investigação em que recebemos 700 textos de jovens do país inteiro a contar como é que estavam a viver o seu confinamento. Eu, no livro, juntei três ou quatro num capítulo, que é o diário de um adolescente na pandemia, mas já temos os 700 jovens todos estudados e eles refletiram algumas coisas positivas nas quais devíamos pensar para o futuro. Disseram que se sentiram mais autónomos, responsabilizados, com mais possibilidade de gerir o seu tempo e eu penso que estas são questões sobre as quais as escolas deviam refletir.

De que é que os miúdos se queixam?
Os miúdos queixam-se de que têm aulas a mais e que a matéria é dada muito de cima para baixo e não se sentem envolvidos nas atividades. Havia um miúdo que dizia que, durante o confinamento, chegava à noite e ainda lhe apetecia ir ao Google pesquisar coisas para a escola enquanto antes, quando tinha aulas presenciais, chegava à noite e só lhe apetecia dormir. Esta exaustão que eles referem muito devia ser alvo de reflexão. Talvez devêssemos valorizar mais o trabalho autónomo e envolvê-los mais na forma como a matéria é transmitida. A gestão dos currículos, que só os professores podem fazer, no sentido de perceber o que é importante e o que é acessório, também poderia ser mais produtiva. Estive num debate com o secretário de Estado da Educação, o professor João Costa, e ele dizia que esse trabalho de depuração dos currículos está a ser feito e eu fiquei muito contente. Agora vamos fazer outro estudo, o take 2 - depois da quarentena, como é que foi voltar à escola - e devemos ter resultados lá para janeiro.

E quanto às relações familiares, que lições é que se podem tirar do período de confinamento?
Claro que cada família tem condições diferentes e faz toda a diferença estarem todos na mesma divisão e haver só um computador (ou nenhum) ou cada um ter o seu quarto e o seu computador, mas os pais que melhor conseguiram ultrapassar isto foram os que conseguiram criar uma rotina com momentos em que estavam todos juntos e momentos em que estava cada um no seu espaço. Quando isso foi possível, houve menos conflitos, porque mesmo numa família sem grandes problemas há um excesso de tempo em conjunto que não é fácil de gerir e pode causar atritos. Depois, há crianças e adolescentes que tinham problemas de saúde e ficaram com menos atendimento médico e menos apoio psicopedagógico e há famílias disfuncionais que ficaram num cenário de grande exposição a violência. Ainda não temos os dados necessários para fazer essa avaliação.

No seu livro, refere a família e os amigos como dois pilares no desenvolvimento dos adolescentes. Por vezes, os pais têm medo "das companhias", de como os amigos podem influenciar negativamente os filhos. Como é que se gere isto?
Todas as famílias são únicas e têm de encontrar as suas próprias regras de funcionamento, não há uma receita, não somos nós que vamos dizer aos pais qual é a melhor maneira de lidar com o filho que conhecem tão bem. Dito isto, se os pais conseguirem, ao longo do crescimento dos filhos, manter com eles um diálogo e canais abertos de comunicação, em que englobam os amigos, é mais fácil monitorizar: saber por onde é que eles andam, quem são os amigos, o que é que gostam de fazer nos tempos livres, as chatices que têm. Não é saber tudo, numa perspetiva de controlo, mas acolher os amigos e perceber as dinâmicas, dando espaço, ajudando a refletir.

Como equilibrar a importância de lhes dar autonomia e liberdade com o medo de que algo de mal lhes aconteça?
Nós somos a única espécie que chega à puberdade, adquire os caracteres sexuais secundários e fica adulta do ponto de vista biológico, mas não foi "fabricada" para ter o bom senso de se fazer à vida e é daí que surgem os clássicos conflitos territoriais e hierárquicos. Se falar com pais e miúdos, as grandes chatices lá em casa são básicas: quem manda e o que é meu e não é meu. Se, com a puberdade, fôssemos para a casa ao lado, esses problemas não existiriam. Isto não acontece com mais nenhum primata. Se os pais virem a coisa desta maneira - que têm um adulto lá em casa do ponto de vista biológico, mas que ainda é imaturo e dependente do ponto de vista emocional e social -, percebem que o miúdo precisa do seu espaço e de ir ganhando autonomia e responsabilidade, porque só assim amadurecerá. Depois, em grandes decisões, claramente o poder tem de ser dos pais, mas isso também pode ser gerido com pequenas autonomias e poderes partilhados. Talvez esta imagem ajude os pais a viver melhor esta aventura com os filhos, que de repente ficam muito diferentes.

Sim, de repente temos uma criatura em transformação que parece que nos está a fugir, que nos obedece com maior dificuldade (ou não obedece de todo), que é mais difícil pôr de castigo... O trabalho tem de começar antes, dando-lhes a base para, quando chegarem à adolescência, confiarmos neles e os deixarmos ir?
É preciso um amor firme, porque tem de haver regras, tem de haver monitorização, mas com afeto e dando-lhes espaço, autonomia e responsabilidade. Se encararmos o adolescente como esta pessoa ambígua que ainda precisa de colo, mas também tem necessidade de ir para fora, suportamo-los mesmo quando são insuportáveis e isso é que é o equilíbrio. Os pais não podem resolver os problemas todos dos filhos, podem ensiná-los a encará-los, podem ensiná-los a tomar decisões, mas não podem decidir por eles. Gostaríamos de proteger os nossos filhos para que não lhes acontecesse nada, mas isso não está ao nosso alcance, o que está é dar-lhes a melhor bagagem para eles conseguirem fazer isso. Os pais superprotetores, chamados de canguru ou helicóptero, contribuem para a ansiedade e falta de confiança dos filhos e para a sua falta de tolerância à frustração, provocando um mal-estar equivalente aos antigos pais punitivos e autoritários.

Mudando de assunto, a relação com os ecrãs e a tecnologia, que preocupa tanta gente, é apenas um sinal dos tempos em que eles vivem ou pode ter implicações mais sérias, nomeadamente a nível de desenvolvimento emocional?
Eu sempre fui muito otimista em relação às tecnologias, porque facilitam a nossa vida e vieram para ficar. Durante o confinamento, imagine o que seria sem elas. Dizia-me um jovem: "Quando foi aquilo da gripe espanhola não sei como é que eles sobreviveram sem internet." [risos]. E, repare, já não é verdade que a geração dos pais seja menos letrada nas novas tecnologias do que a dos filhos. Neste momento, toda a gente as usa. Mais uma vez, aplica-se a estratégia do diálogo e da parceria, tentar estar em cima do acontecimento e detetar sinais de falta de alternativas. Aquele jovem que está agarrado à internet e não faz mais nada, não está com amigos, não vê televisão, não come, não dorme, isso já é complicado e deve ser visto. Mas até para nós, psicoterapeutas, é difícil porque para tratar alguém de uma dependência em geral temos de afastar a pessoa do objeto de dependência e hoje não é possível afastar alguém completamente dos ecrãs.

Pois, eu dei um castigo à minha filha de ficar um mês sem telemóvel e depois percebi que não podia ser porque preciso que ela esteja contactável.
Isso é muito verdade agora, mas a Catarina conseguiu chegar viva à sua idade sem ter telemóvel quando era adolescente. Já pensou nisso? É um sinal dos tempos e temos é de que gerir isto de forma que não seja excessivo. As grandes discussões com os pais em 1998 eram o tabaco, o álcool, as saídas à noite e as experiências sexuais. Neste momento, é o tempo que se está no smartphone, nas séries e nos jogos. A atividade sexual, o tabaco e o álcool passaram para o fim da lista, parece que já não dão discussão nenhuma e que lá em casa está tudo a funcionar bem a esse nível. Deve ter acontecido noutras gerações antes outras discussões, nós é que não estávamos cá para assistir.

O adiamento ou até algum desinteresse que se nota nesta geração relativamente à sexualidade decorrem do uso das tecnologias para mediar as relações e de alguma imaturidade emocional que isso causa na relação com o outro?
Os adolescentes continuam a dizer que preferem estar com os pares ao vivo do que através das tecnologias. Outra coisa importante é que a maioria dos jovens está na internet com amigos. É muito baixa a probabilidade de se ligarem a estranhos. No meu tempo, eu chegava a casa, telefonava aos meus amigos e passava o resto da tarde ao telefone com eles. Agora, já não é ao telefone, é no WhatsApp, no Messenger, no que for, e não com estranhos. Acho que mudou apenas o dispositivo. Quanto à questão da atividade sexual, há 15 anos a preocupação era que a iniciavam cedo e que se tivessem educação sexual iniciavam mais cedo e não podia ser, não tinham maturidade, que horror; agora é que horror, eles estão muito atrasados na iniciação sexual. É evidente, e todos os estudos apontam isso, que um jovem informado - e a educação sexual contribui para isso - e seguro da sua vida e do seu corpo não tem de se precipitar a iniciar uma relação sexual não planeada e não desejada só porque já toda a gente o fez. Se os jovens estão a dar tempo - e esse tempo é um tempo saudável de deixarmos crescer as coisas dentro de nós - e a adiar a sexualidade, isso é a nossa história contemporânea, estamos a vivê-la em tempo real.

Não é muito politicamente correto dizer-se, mas há uma diferença entre rapazes e raparigas - e não estou a falar já de iniciação sexual, mas, por exemplo, de maior propensão para o risco por parte dos rapazes.
É verdade. Para já, há cargas hormonais diferentes que influenciam o tipo de comportamentos e depois há a cultura em que vivem desde pequeninos. Mesmo aqueles de nós que tivemos a sorte de não ser criados com distinções de papéis de género e que conseguimos não o fazer com os nossos filhos, temos a surpresa de perceber que não somos assim tão determinantes na educação dos filhos, porque eles têm muito onde ir buscar modelos - na escola, na televisão, etc. - e esses modelos perpetuam (cada vez menos, felizmente) diferenças e estereótipos. Por outro lado, há estudos das neurociências, com uso de ressonâncias magnéticas funcionais que em tempo real veem o funcionamento do cérebro, e mostram que os adolescentes (rapazes e raparigas) têm uma espécie de um gap (desfasamento) de maturidade entre a parte cognitiva e a parte emocional e aos 13-15 anos são perfeitos do ponto de vista cognitivo, mas só aos 24 é que a parte emocional acompanha a parte cognitiva. Isto quer dizer que um adolescente consegue pensar e falar das coisas, mas quando a tentação está à frente, sobretudo quando está com os amigos e sobretudo quando se é rapaz, a tendência para o risco mais do que dobra e, portanto, no fundo a questão é o grupo e é ser-se rapaz.

Portanto, fazem mais disparates quando estão em grupo e quando são rapazes. É deixá-los?
Depende dos disparates. Eu acho que podemos ter esta conversa com os miúdos porque eles, quando não estão no calor da coisa, percebem tudo muito bem porque cognitivamente são adultos e até com muito mais capacidade no disco para memorizarem. Se sabemos que, entre os 13-15 e os 24, sabem perfeitamente que um comportamento é disparate, mas não conseguem ativar o sistema de travagem, temos de discutir com eles como é que ativam o plano B, a quem é que telefonam se estiverem aflitos e o que é certo e errado.

Esse é um trabalho que tem de se começar a fazer muito antes da adolescência, não é?
Há uma ideia interessante (que li no Mia Couto) que é: tudo fica muito melhor quando começarmos a escolher as pessoas pela sua tolerância e pela sua empatia em vez de as escolhermos pela sua arrogância e pela sua prepotência. Quando o rufia da escola é aquele que dá cartas, está tudo muito escangalhado. Já é tempo de o rufia perder a aura de herói e passar a ter a aura de parvo.

Não acha que isso também está a mudar?
Estamos mais cosmopolitas e essa é uma evolução cultural interessante, mas uma coisa é aquilo que nos habituamos a dizer e outra é aquilo que ainda temos lá dentro, há coisas mais pequeninas, micropreconceitos de que nem nos apercebemos. Vai demorar mais tempo a mudar, muito mais tempo.

Um dos indicadores que contribuíram para essa mudança é o nível académico das mães. Como é que se explica isso?
Em saúde pública, o melhor preditor de vários indicadores de sucesso é a educação das mães, de facto. Provavelmente, não tem tanto impacto nos países europeus, mas nos países africanos, asiáticos e sul-americanos é muito claro. Há dois motivos: uma mãe com mais habilitações tende a preocupar-se mais com a sua saúde e com a educação e saúde dos filhos, por um lado, e, por outro, tende a não ter tantos filhos. Apesar de se estar a desvalorizar um bocadinho os graus académicos, a verdade é que fazem diferença, criam a chamada complexidade cognitiva e, quando uma mãe - que provavelmente já teve pais que também valorizavam a educação - a tem, isso é um bom prognóstico. Foi uma das áreas em que evoluímos bastante em que Portugal desde 1998. Foram imensos os pais que deixaram de ter apenas o primeiro ciclo e foram imensos os que entraram para o ensino superior. Em 20 anos, tivemos uma evolução espetacular neste aspeto, sobretudo por parte das mulheres, mas também dos homens, e isso só pode ter um impacto positivo na vida, na saúde e no bem-estar dos filhos.

Fonte: DN

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