sábado, 26 de setembro de 2020

Cuidado: O excesso de Inclusão pode matá-la. (Cap. 2)

Este é a segunda reflexão que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos, com uma análise pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma assim denominado.

CAPÍTULO 2 
As mudanças: novidades, ou talvez não.

A primeira grande alteração prática e efetiva, que se desejava, foi o fim da CIF como modelo de classificação dos alunos, cuja obrigatoriedade estava inscrita na lei anterior, o que motivou críticas desde o primeiro dia da sua implementação, dado que entrava em contradição com a construção de uma melhor inclusão e mantinha o primado do modelo clínico sobre um modelo mais pedagógico, tendo como resultado selecionar quem acedia a que tipo de medidas e recursos. No DL/54 ensaia-se uma forma de identificação dos alunos elegíveis para cada medida, baseada na eliminação de barreiras e na fundamentação pedagógica para o apoio necessário.

Aparecem também as Medidas Universais como a grande mudança, pois permitem que medias de acesso ao currículo anteriormente integradas na Educação Especial (Acomodações Curriculares) inscritas num PEI, possam agora ser aplicadas por todos os docentes sempre que necessário.

Com estas mudanças criaram-se dois problemas: i) a saída da esfera especializada das medidas de acesso ao currículo (acomodações curriculares) e ii) a restrição de atribuição de apoios especializados, adaptações à avaliação externa e redução de turma, apenas aos alunos com RTP. Logo, não universais.

Primeiramente este salto para um modelo social, secundarizou a especificidade do indivíduo e as suas barreiras intrínsecas, essenciais para compreender a pessoa no seu contexto. Abandona-se de tal maneira um modelo individual, que se perde uma abordagem mais equilibrada, numa linha bio psico social. A elegibilidade como que desapareceu, ou antes, colocou num grande saco tudo e todos, agora sob a forma de barreiras e potencialidades, que dizem tudo e coisa nenhuma. Nas escolas é visível esse desnorte na elegibilidade, na avaliação pedagógica com referência aos currículos, na falta de rigor e clareza numa matéria tão sensível, tornando geral o que é específico e o que deveria ser específico banaliza-se.

Paralelamente, a definição de NEE de caráter permanente (outra criatividade portuguesa), “recua” para as medidas adicionais, nomeadamente para o nº1 do Artigo 10º, “As medidas adicionais visam colmatar dificuldades acentuadas e persistentes ao nível da comunicação, interação, cognição ou aprendizagem que exigem recursos especializados de apoio à aprendizagem e à inclusão”. Desta vez são “acentuadas” e “persistentes”, logo, carecem de uma fundamentação clínica. Ao mesmo tempo, a figura do RTP, só se aplica quando existam, pelo menos, Medidas Seletivas, excluindo as Universais, logo as Acomodações, ao contrário do que acontecia antes, onde o PEI salvaguardava a necessidade de medidas de acesso ao currículo para os alunos com NEE.

Esta abertura é centralmente positiva, mas tornou-se num presente envenenado. Retira as acomodações curriculares do âmbito da especialidade e do RTP, onde, em muitos casos, são necessárias por questões de incapacidade intrínseca e perturbações. Uma coisa é abrir as Medidas Universais (que sempre existiram) a quem delas possa necessitar (embora nunca tenha sido vedada a sua utilização anteriormente por todo o ensino), outra coisa é um aluno que necessita destas Medidas de forma permanente, devido a condições individuais, deixar de ter acesso a redução de turma, apoio especializado, apoio personalizado, ou a condições nos exames, sabendo-se que as medidas de acesso ao currículo e adaptação da avaliação, estão contidas nas Acomodações Curriculares. Como resultado, acautelaram-se as situações que exigem investimento financeiro, mas na realidade corre-se o risco de estar a desproteger estes alunos e dilui-los em respostas gerais, contrariando o direito a uma diferenciação com equidade.

Para além do atrás referido temos ainda conceitos, medidas e modelos supostamente novos, a complicar aquilo que poderia ser tão simples, mas que passou a ser um conjunto importado de nomenclaturas criativas. A própria Diferenciação Pedagógica, tão necessária no nosso sistema de ensino, aparece como uma medida prescritiva para alguns alunos em dificuldade, como se fosse possível promove-la, sem diferenciar o ensino, dado que é uma metodologia de ensino para toda a turma.

Também o Desenho Universal é uma forma de planificar para o ensino global da turma. Como se pode pedir que os professores planifiquem de acordo com o Desenho Universal, quando as planificações dos departamentos curriculares e as Aprendizagens Essenciais não são organizadas de acordo com esses princípios?

O Modelo Multinível, uma forma de organizar práticas e ações nos sistemas, aparece como mero organizador de medidas prescritivas. Não é um modelo pedagógico, mas aparece misturado como se fosse. A sua introdução nesta lei é completamente desnecessária, pois já desde os anos 90 que se divulgam praticam princípios como “meio menos restritivo possível” ou “aplicação progressiva de medidas mais restritivas”.

Contradições e falta de rigor científico que fragilizam o diploma e comprometem a sua real implementação. Conceitos como Desenho Universal, Diferenciação Pedagógica e Educação Multinível, deveriam fazer parte de uma estratégia mais global para todos os alunos, por exemplo, no DL/55, mas estão longe de serem apropriados pelas escolas. As suas corretas definições remetem para uma implementação que não se circunscreve a um contexto e aplicação de medidas especificas numa parte do sistema.

Como consequência, tudo isto acabou por se instalar como um problema, que cada escola resolve da melhor forma, mas que resulta, na prática, em leituras criativas, procedimentos díspares, menos apoio específico, menos investimento, menos reduções de turma e diluição em medidas de apoio gerais, que prejudicam muitos alunos, antes acautelados.

As mudanças: querer mais inclusão sem Educação Especial 

Outra mudança é procurar tornar a Educação Especial apenas numa disciplina de apoio colaborativo, esvaziando-a como estrutura responsável pela inclusão destes alunos e não garantido a sua efetiva e fundamental atuação direta especializada dos que dela necessitam e dependem. Isto abre também a porta à redução destes profissionais. Uma lei desta natureza tem que ter em conta as necessidades e a realidade das escolas, não pode simplesmente perder-se na magia da retórica e decretar a Inclusão, ao mesmo tempo que secundariza os principais atores da mesma, ao longo de décadas.

Deveríamos ter partido de uma avaliação da anterior lei e melhorar, mas sem complicar ou introduzir modelos desnecessários. Concordamos que se trata de um caminho a percorrer por todos, em simultâneo, através de passos seguros e respeitando a velocidade e necessidade das escolas. Só que não foi feita essa avaliação, nem foram tidos em conta os atores principais da mudança, criando um divórcio entre a realidade das escolas, as suas necessidades, o ponto onde se encontram e aquilo que a lei pretende.

Por outro lado, também não se pode dizer que existe uma lei de Educação Inclusiva e querer alterar o corpo de professores de Educação Especial para professores de ação genérica, criando um perfil funcional difuso de apoio indireto. Coloca-se em causa o corpo de conhecimento específico desta área curricular legalmente consignada. Todos os professores têm de ser de Inclusão e ter esse objetivo assumido no sistema de forma transversal. A Inclusão é um valor e é um objetivo do sistema educativo, da escola e das disciplinas, não é, por si só, uma disciplina. Aliás, nesta lei nem se define o que é Educação Inclusiva, estranho, ou talvez não.

As mudanças: uma EMAEI redundante no local errado

Outra das alterações inquietantes é a criação de uma equipa de coordenadores, EMAEI, que seria responsável pela Inclusão, mas, mais uma vez, acaba por ser só para os alunos abrangidos pela legislação, como decorre da leitura das suas competências e a dimensão onde foi criada. Na prática fica reduzida à implementação de medidas prescritivas e a um papel administrativo e burocrático, completamente redundante. Aliás, a burocracia é a grande marca desta lei.

Em nenhuma outra legislação, a não ser no DL/54, aparecem referidas as EMAEI ou os CAA, nomeadamente no Decreto Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, ou Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho. Não está regulamentada a sua ação, nem se percebe onde fica na hierarquia de um Agrupamento. Portanto, pretender fazer uma leitura abrangente do contexto de atuação destas estruturas, parece-nos ser um ato de muita generosidade.

Basta ler as competências da EMAEI, para perceber que se trata de uma equipa que zela pelo cumprimento do DL/54, nos procedimentos de identificação e acompanhamento das medidas, na participação dos pais, na elaboração dos RTP, PEI e PT, bem como acompanhar os Centros de Apoio à Aprendizagem. Para além destas competências, duas lacónicas alíneas falam em sensibilizar para a inclusão e prestar aconselhamento sobre práticas inclusivas aos docentes, inferindo tratar-se dos docentes dos alunos abrangidos pelo DL/54. Com um peso enorme relacionado com a aplicação do DL/54, não vemos nestas duas alíneas o caráter abrangente, que alguns interpretam ser a função da EMAEI e a prática nos Agrupamentos está à vista.

Por não ter conteúdo funcional fora das gestão de medidas prescritivas, a EMAEI tem de ir disputar competências com outros setores da escola, nomeadamente tentando fazer o que é da competência do Departamento de Educação Especial, dos Conselhos de Turma, dos Departamentos e Disciplinas e, principalmente do Conselho Pedagógico e do Diretor. Estando já organizadas opções mais inclusivas para a gestão dos apoios e das medidas, pelos órgãos que efetivamente trabalham com os alunos e os conhecem, não faz sentido criar uma estrutura à parte.

Estranhamente temos aqui um movimento inverso ao que inicialmente deveria ser o lógico, ou seja, em vez do trabalho pela Inclusão dos alunos com NEE, ser aprofundado e disseminado pelo resto da escola, “contaminando” o ensino para todos os Departamentos; são os restantes Departamentos que se inserem numa Lei setorial, mas não cuidam da Inclusão para todos os alunos nas suas respetivas áreas. Temos então um elevado número de pessoas a tratar do que poderia ser feito de forma bem mais simples e especializada, descurando as suas áreas de referência. como aliás acontece nos documentos pedagógicos correntes da escola como os Planos de Acompanhamento ou os Planos de Turma, por exemplo.

Em muitos Agrupamentos temos um grupo de pessoas que se reúne semanalmente por diversas horas, afogadas em burocracia e prazos, totalmente ineficaz, sem conhecer alunos, com uma sobrecarga de trabalho, para fazer, o que afinal legitimamente já era anteriormente feito pelo Departamento de Educação Especial, SPO, pais, técnicos e Conselhos de Turma/Docentes. Instalou-se nas escolas uma disparidade de formas de organização e de atuação nos diferentes Agrupamentos, com leituras diferentes do que já nasceu ambíguo, pondo em causa a forma atempada, célere, prática e sigilosa, de gerir estes processos, pelos intervenientes diretos, como até aqui.

Seria muito mais eficaz criar uma equipa do género com influência transversal e abrangente, a um nível superior, no seio do Conselho Pedagógico, onde já todos esses coordenadores têm assento. Um órgão com responsabilidade na promoção e acompanhamento da Inclusão em todo o ensino e em todas as áreas. Criada no DL/55, por exemplo, onde cada coordenador acompanharia e responderia pelo seu próprio departamento em matéria de Inclusão. Por muito que se queira fazer crer, ou interpretar, a EMAEI não tem recursos próprios, jurisdição nos processos pedagógicos e medidas para o sucesso para todos os alunos, nem atua em toda a escola, o que a diminui e a remete para um setor específico. pretende-se que esta equipa permanente acaba por definir um conjunto de indicadores de avaliação da inclusão, mas não a toda a escola, apenas no âmbito da aplicação do DL/54. Atente-se ao estipulado no ponto 2 do artigo 11º do Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho, que remete o DL/54 para o seu canto.

A forma como a EMAEI se organiza, com elementos permanentes e variáveis, cria muitas dúvidas pelo país e formas de atuação díspares, nem torna a deteção das necessidades mais atempada, nem cuida do rigor das decisões, nem muda os atores (elementos variáveis), dado que são os mesmos que já o faziam, isto para além das diferentes interpretações que está a ter. Faria sentido separar as duas vertentes. As decisões sobre medidas e sua aplicação já são tratadas por quem trabalha com os alunos e assim deveriam continuar, à semelhança de tantas outras situações como as tutorias, planos de apoio, apoio ao estudo, salas específicas, projetos do português e da matemática, etc… porquê neste particular excluir?

Também nos preocupa a forma como é tratada a Educação Especial, na composição permanente. Todos são coordenadores exceto o representante da Educação Especial. Ou seja, quem redigiu esta lei omite que em todos os Agrupamentos de Portugal já existem coordenadores de Educação Especial. Em muitos deles a EE constitui-se até como Departamento autónomo, tem assento no Pedagógico, sendo avaliado na sua especificidade e transversalidade e prestando contas de forma autónoma ao Conselho Pedagógico, ao Diretor, à IGE e à tutela. O que se passa neste momento é que muitos Agrupamentos foram mais longe e acabaram com os Departamentos de Educação Especial e passaram a designar Departamento de Educação Inclusiva, resultando que, de repente, apenas alguns professores se tornaram Inclusivos. Outros simplesmente remeteram a EE para um papel executivo. Foram conquistas de muitos anos, onde só a Inclusão ficou a ganhar com uma Educação Especial mais forte, reconhecida pelas estruturas e pelos pares. Com a nova legislação há um esvaziamento da Educação Especial sem sentido e a que preço. Sabemos que na proposta de lei para discussão pública, estava ausente qualquer referência à Educação Especial e seus profissionais. Parece que na génese deste documento está a ideia de minimizar a Educação Especial como grupo ou departamento autónomo organizado e especializado, com estatuto legal consignado, com funções e recursos próprios que gere e responsabilidade na educação direta e indireta dos alunos com NEE e na promoção da Educação Inclusiva. 

Jorge Humberto Nogueira

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