Pôr o filho com fibrose cística a saltar num trampolim, inventar uma tala com uma colher de pau e velcro para imobilizar uma mão que não pára de tremer, encher a casa de balões para estimular o filho a andar. São invenções caseiras que nasceram de problemas do dia-a-dia de quem sofre ou é familiar de um doente. A ideia é simples: não há ninguém mais motivado para encontrar soluções do que os próprios. Mesmo que, quando vão ao consultório, o médico ouça as conquistas e lhes devolva “um sorriso de troça”.
Pedro Oliveira é engenheiro, faz investigação em “inovação do utilizador”, ele bem sabe que muito poucas pessoas sabem o que raio é isso. Nesta área, o tema anterior que tinha estudado foi o sistema bancário. Por isso, foi inédito e comovente o que lhe aconteceu nos últimos dois anos: “Nunca na vida tinha recebido postais de Natal a dizer-me ‘por favor, não desista do seu projeto’”, nunca lhe passaria pela cabeça que um Prémio Nobel da Medicina lhe viesse dizer que apoiava o projeto e que o dinheiro para o pôr em prática viesse ter consigo sem ele o pedir.
O objetivo inicial era tentar perceber o papel dos doentes no desenvolvimento de inovações na saúde. “O que encontrei foi surpreendente”: não faltam exemplos de invenções que foram desenvolvidas pelos próprios pacientes; numa pesquisa inicial encontraram umas cem histórias no mundo, depois foram muitas mais. A ideia é simples: não há ninguém mais motivado para inovar do que quem sofre da doença ou é seu familiar.
“Era apenas uma experiência, para fins de investigação”, a de criar uma plataforma digital que abrisse “um espaço onde os doentes partilhassem as soluções que encontraram para resolver problemas do seu dia-a-dia”. Mas quando Pedro Oliveira, professor da Católica Lisbon School of Business and Economics, juntamente com o seu colega Eric Von Hippel, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), começaram a apresentar a ideia em congressos internacionais da especialidade “fomos surpreendidos”.
Há pessoas que vieram ter com eles, que lhes elogiaram o projecto, mas não só, que disseram que os iam apoiar. Aconteceu assim com um Nobel de Medicina, Richard Roberts, que vai estar na Universidade Católica de Lisboa para a apresentação do projecto. Depois, “conseguimos financiamento que não pedimos. Eu estava boquiaberto”.
Esta é a história da plataforma Patient Innovation (https://patient-innovation.com/) que nesta sexta-feira passa a estar online. Abre com 35 histórias, cerca de um terço das quais são portuguesas. Qualquer língua é aceite, depois haverá um sistema de tradução automática a ser editado pela equipa do projeto.
Não estamos a falar de curas, são pequenas técnicas, diz Pedro Oliveira. Um engenheiro inglês, Tal Golesworthy, sofre de síndrome de Marfan, uma doença hereditária em que uma das complicações possíveis é insuficência da aorta. Em 1992, demonstrava valores anormais de dilatação da aorta, a opção era ser sujeito a uma complicada cirurgia ao coração e passar uma vida a tomar medicamentos anticoagulantes. Seguiu outro caminho.
Assim surgiu o Exovasc, uma pecinha que serve de suporte à raiz da aorta. Chegou ao médico e pediu para lhe colocar o objeto. “Fez aquilo em casa. Percebeu que o problema que tinha na aorta era um problema de canalização. Esta é uma história incrível”, ressalva Pedro Oliveira.
O investigador prefere as histórias mais simples. Como a de Joaquina Teixeira. O seu filho, Gonçalo, hoje com 11 anos, tem síndrome de Angelman, uma doença genética rara que causa distúrbios psicomotores, ausência de linguagem, descoordenação motora, défice cognitivo severo. Não tem cura. Com seis anos e meio ainda não andava, apenas gatinhava, desde os dois.
Joaquina conhecia do filho uma coisa, que adorava balões. O que fez foi encher a casa deles, de muitas cores, e a diferentes alturas, a alguns ele conseguia chegar com menos esforço, noutros tinha de se pôr em pé. Mas isso não bastava, Gonçalo punha-se de pé e depois voltava a andar de gatas. A mãe lembrou-se então de comprar umas joelheiras e com fita adesiva colar-lhe caricas de garrafas. Ele punha-se de pé para alcançar um balão, mas se voltasse a dobrar as pernas sentia desconforto. Em cerca de um mês começou a andar, recorda.
Os problemas surgem no dia-a-dia e há que os ir resolvendo. Joaquina Teixeira, com formação em secretariado, lembra outro. Como o filho tremia a mão e a entortava toda para trás, pegou numa colher de pau e velcro e, em situações em que tinha de estar muito tempo parado, por exemplo, em viagens de carro, aplicava-lhe esta sua caseira “invenção”. “Não há médicos que nos ensinem estas coisas, nem são coisas que os preocupem. São ideias que não passam pela cabeça de muitos.”
São soluções corriqueiras que, por vezes, mais do que conhecer a doença, passam por conhecer a forma como cada patologia se manifesta em cada pessoa. A Mariana sofre de síndrome Cri-du-Chat, uma doença que, traduzida do francês, significa algo como grito do gato. Um dos possíveis distúrbios comportamentais é um fascínio por cabelos. É o caso de Mariana, que, quando está agitada, puxa os cabelos com tanta força que chega a arrancá-los. Os pais repararam que se tivesse o cabelo molhado não gostava de lhe tocar. Solução: passaram a pôr-lhe gel que lhe deixa a sensação de estar sempre molhado.
Tal como muitas vezes na ciência, as descobertas acontecem por acaso. Uma rapariga com fibrose cística tinha um trampolim em casa que usava várias vezes por dia durante longos períodos de tempo. Os pais observaram que os seus saltos evitavam, muitas vezes, tratamento ou terapia extra para os pulmões. A vibração do trampolim estava a soltar o muco dos pulmões.
A família de Susana Moura sempre viveu com música, o pai é músico, o marido toca bateria, o filho sempre se interessou por música, era pequeno e já lhe dizia frases “como é bela esta triste melodia”. Aos cinco anos começou a aprender a tocar piano, aos nove anos entrou para o Conservatório de Música de Lisboa.
Ao longo do processo de crescimento do filho, Susana, que é professora de Português e Escrita Criativa, percebeu que algo não estava bem. Diogo Lopes não punha o calcanhar todo no chão e estava sempre a cair com a falta de equilíbrio. Um médico chegou a dizer-lhe que o problema do filho é que “tinha aprendido a andar mal”, mas Susana sabia que não podia ser isso. Foram dez anos a saltar de médico em médico, durante muito tempo foi erradamente seguido em ortopedia, até ir parar à especialidade certa, neurologia. O médico sabia o nome do que o Diogo tinha, Charcot-Marie-Tooth, uma doença neuromuscular degenerativa.
Susana Moura não tem dúvida de que sabe mais da doença do que a maioria dos médicos. Porque é tão rara e porque é ela que vive com o filho. É por isso que tem a certeza de que o acaso de o ter posto a tocar piano desde cedo lhe atrasou a manifestação da doença nas mãos. A patologia afecta mãos e pés, e ela compara as mãos do filho com as de portadores da mesma doença e sabe que o dedilhar do piano levou a que as mãos de Diogo ainda não apresentem deformidades ósseas. “Desde os cinco anos que faz fisioterapia às mãos sem saber.”
Das vezes em que falou ao médico desta e de outras conquistas quotidianas, sentiu “um sorriso de troça. Há uma desvalorização, uma ridicularização, que não é verbal. Ignoram. Nós somos doentes, eles são médicos”. Gonçalo só vai ao neurologista uma vez por ano, à médica fisiatra vai duas de três em três meses, ela é que vive com ele. “A pessoa vai ao consultório de um médico, queixa-se, ouve, e leva directrizes para seguir.”
“Nisto das doenças raras há um grande desinteresse por parte dos médicos, é entre pacientes que acabamos por conhecer melhor a doença.” É verdade que se diz que agora com a Internet toda a informação está disponível, não é verdade. “Estamos sozinhos, há coisas que lemos que nos assustam mais”; nas redes sociais, Susana faz parte de vários grupos desta doença nos Estados Unidos, no México, no Brasil, a informação dispersa-se.
Na nova plataforma “há unificação de um tipo de informação que nos vai aguçar o espírito para arranjar outras soluções”. “Há muita gente que vê o diagnóstico como o destino traçado.” Esta plataforma digital de partilha de experiências é, para ela, como um sinal obrigatório, “vamos para a frente”.
A doença do filho vai levar a que a certa altura os pés e as mãos encarquilhem, que fiquem encolhidos, como garras. “Não tem cura, vai avançando, o que podemos fazer é atrasar.”
“Não vivemos a doença do Diogo, vivemos com a doença do Diogo. Vivemos a vida.” “Quando é que ele vai deixar de tocar piano?” “Não sei.” Na sexta-feira, na sessão de lançamento da plataforma, vai dar um concerto.
In: Público
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