Nos últimos dias houve um avanço significativo no alargamento da estratégia do empobrecimento nacional à Educação, na sua vertente mais sensível, que é o da oferta educativa disponível para os alunos do ensino básico.
Com o pretexto oficial do aprofundamento da autonomia das escolas em matéria de gestão curricular e apenas com a colaboração e bênção de alguns operadores privados no setor, foi publicada legislação que permite a “especialização” das escolas básicas, através da transferência da carga letiva de umas disciplinas para outras, podendo parte delas ficar apenas com 45 minutos semanais, enquanto outras poderão ver aumentada essa carga (na ordem dos 25%) ou serem mesmo criadas novas disciplinas fora das matrizes em vigor.
A apoiar a ideia, surgiu o diretor executivo da Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (Aeep), que decidiu invocar, para legitimar este tipo de política curricular, o “interesse das crianças” contra os dos adultos (leia-se “professores”), pois ele considera, e assim foi citado em notícia do PÚBLICO, que “no limite” se pode começar a formar um médico no 5.º ano, adequando o currículo a esse objetivo.
Há que, quando se atinge este nível de desvario demagógico, recentrar a discussão e esclarecer alguns pontos fundamentais, que deveriam ser pacíficos para além de qualquer delírio ideológico ou interesse económico ou corporativo.
– No 5.º ano, aos dez anos, ou mesmo no 7.º, aos 12, serão poucas as crianças que terão condições para fazer uma escolha de tipo profissional, sobre a qual se construam matrizes curriculares especializadas, em especial se amputarem, logo no início, o contacto com diversas áreas do conhecimento e das expressões. O que poderão existir é interesses familiares – dos adultos – relacionados com o futuro desejado para os seus filhos, mas que dificilmente se podem disfarçar com outros argumentos, de caráter pedagógico ou mesmo moral, como é muito habitual nestas situações. Não me parece ser matéria de especial controvérsia que não é reduzindo de modo muito precoce o currículo que se presta um bom serviço às crianças e muito menos se servem vocações. Quando muito, condicionam-se as opções e tais vocações.
– A possibilidade de diversificar o currículo-padrão é algo muito positivo, em especial a partir do ensino secundário e quando a escolaridade está nos 12 anos. E pode ser positivo mesmo no ensino básico, se a lógica for a do alargamento das opções disponíveis e não do seu prematuro afunilamento por decisão dos adultos. O que faz sentido existir é, para além do tal currículo-padrão que até já pode atualmente ser retocado mesmo se de forma muito pontual, alargar o contacto das crianças e jovens com outro tipo de matérias, seja no campo das ciências, das humanidades ou das expressões, devendo ser essa oferta complementar frequentada em regime de escolha voluntária e não de “especialização” única da escola. Porque o que interessa é permitir aos alunos conhecer antes de escolher, contactar antes de optar. O que o MEC e a Aeep pretendem é algo diferente: é limitar muito cedo uma verdadeira liberdade de escolha. Uma coisa é reduzir ligeiramente a carga letiva semanal obrigatória e facultar um leque de opções suplementares, com um número mínimo de alunos e nunca com a dimensão atual na maioria das escolas, para que os interesses dos alunos em causa sejam realmente servidos.
Isto significa que uma boa ideia pode ser bem ou mal implementada, conforme se pretenda verdadeiramente servir os interesses das crianças do ponto de vista pedagógico e de enriquecimento curricular ou usar essas crianças como pretexto para inclinar o currículo num sentido que é fácil adivinhar, pois tanto o ministro como o diretor executivo da Aeep são conhecidos defensores da aposta nas STEM, ou seja, nas Ciências e Tecnologias em detrimento das Artes e Humanidades, numa lógica em tudo confluente com a de um qualquer ministro da Economia de visão limitada.
Não vou sequer demorar-me em questões mais práticas como a contradição entre esta especialização curricular a partir do 2.º ciclo e a homogeneização dos projetos educativos que foi forçada pelos mega-agrupamentos. Ou o desfasamento entre a definição de metas curriculares enciclopédicas em algumas disciplinas e a possibilidade de elas virem a ter 45 minutos semanais.
O que pretendo mesmo é denunciar que esta lógica de suposta especialização significa um empobrecimento curricular e que o tão abusado “interesse das crianças” não é mais do que uma máscara para opções em que elas não têm qualquer participação.
Paulo Guinote
Professor do ensino básico. Doutorado em História da Educação. Autor do blogue A Educação do meu Umbigo
In: Público por indicação de Livresco
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