A criança diz “dois leãos’ ou “dois leões”? Dois “caracoles” ou “dois caracóis”? E a partir de ilustrações consegue nomear ações do quotidiano, como “comer”, “pintar” ou “correr”? Como indica a localização de um objeto? Sabe dizer que a colher está “ao lado” do prato e que o garfo está “dentro” dele? Isoladas, as respostas a estas questões não têm qualquer significado, mas, integradas no teste de avaliação de Linguagem Pré-Escolar concebido por quatro investigadoras portuguesas, elas podem ajudar terapeutas da fala a detetar problemas linguísticos de crianças entre os três e os seis anos que devem ser corrigidos antes da entrada no 1.º ciclo para evitar o insucesso escolar, alerta uma das autoras, Marisa Lousada, professora na Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro (UA).
Não é o único teste do género, mas é um dos poucos concebidos para a língua portuguesa e para a avaliação, separadamente, da compreensão e da expressão verbal oral, nas áreas da semântica e da morfossintaxe, de crianças em fase pré-escolar. Uma vantagem, segundo Marisa Lousada, “na medida em que um diagnóstico muito preciso das dificuldades permite a conceção e a aplicação de um plano de intervenção dirigido às necessidades específicas de cada criança”.
Envolvendo quatro investigadoras, algumas das quais já não se encontram, atualmente, na UA, o teste resultou do desenvolvimento, ao longo de uma década, de vários projetos, financiados pela Fundação Calouste Gulbenkian, pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Educação e Ciência. A comercialização dos materiais por uma nova empresa, spin-off da UA, é, assim, o culminar do trabalho que decorre desde 2004, anunciou o gabinete de imprensa daquela universidade.
À conceção do teste, disse Marisa Lousada (...), seguiu-se, numa fase inicial, a encomenda das ilustrações destinadas à avaliação de cada competência linguística. E, depois, a sua utilização em estudos-piloto com crianças em idade pré-escolar. Só numa última fase os diversos materiais – um livro de imagens e uma coleção de objetos, um manual de aplicação e uma folha de registo – foram testados por terapeutas da fala junto de 817 crianças (402 meninas e 415 meninos) com idades entre os três e os seis anos, residentes em 11 distritos portugueses.
Estes últimos testes serviram para determinar os parâmetros de normalidade em relação às competências das crianças das diferentes faixas etárias. “’A senhora que está a brincar com o Miguel tem o cabelo preto. Quem é que tem o cabelo preto?’ É normal que uma criança de três anos não saiba o que dizer, mas uma de cinco anos já deve ser capaz de compreender uma frase complexa deste género e de responder corretamente”, exemplifica Marisa Lousada.
Outro caso: “Mostramos a imagem de uma menina a beber e dizemos: A menina está a beber um sumo. Depois mostramos outra imagem e perguntamos: O que está a fazer a menina? Uma criança com três anos já será capaz de responder: A menina está a lavar os dentes”. Ainda assim, diz Marisa Lousada, pode haver alguma que não o faz (diz apenas “lavar”, por exemplo), mas, na imagem seguinte, consegue identificar qual das meninas está a lavar os dentes, “o que mostra que a um eventual problema de expressão não corresponderá o de compreensão”.
Estes exemplos, contudo não podem ser analisados de forma isolada, ressalva Marisa Lousada, frisando que só a análise global da cotação das respostas, de acordo com um modelo pré-definido, permite tirar conclusões.
A fiabilidade do teste foi garantida através de diferentes métodos, entre eles a sua aplicação por duas terapeutas ao mesmo grupo de 30 crianças, com um nível de concordância nos resultados de 95,6 por cento. A sua validade foi evidenciada, por exemplo, pelo aumento progressivo da cotação na compreensão e na expressão ao longo das faixas etárias, indicou.
Marisa Lousada afirma que não existem estudos fiáveis que permitam saber qual a percentagem de crianças portuguesas que chegam ao 1.º ciclo com problemas de linguagem por diagnosticar, mas, com base em estudos feitos noutros países, calcula que ela possa rondar os 10%. “Pode ser mais ou menos, mas será um número significativo e preocupante, principalmente se tivermos em conta que muitos dos casos em que o diagnóstico não está feito correspondem a situações em que não há uma complicação associada, como a trissomia 21, a deficiência auditiva ou o autismo”, disse. Isto porque, justificou, "estas últimas têm, normalmente, apoio ao nível da terapia da fala, ao contrário das primeiras, cujas dificuldades passam despercebidas". Nestes casos, diz, "o mais provável é que os problemas se vão arrastando até à entrada no 1º ano, altura em que inevitavelmente se refletirão na aprendizagem da leitura e da escrita, conduzindo ao insucesso escolar”.
Para além daquela investigadora, participaram na concepção do teste Ana Mendes, que atualmente é professora no Instituto Superior Politécnico de Setúbal, Fátima Andrade, docente no Departamento de Educação da UA, e Elisabete Afonso, professora do ensino secundário.
In: Público
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