Professor na Universidade de Clermont Ferrand e autor de várias obras sobre a aprendizagem da linguagem escrita e da numeração, Michel Fayol veio a Portugal a convite da Iniciativa Educação, organização que tem o ex-ministro da Educação Nuno Crato como um dos diretores e que promove a qualificação dos jovens, em especial junto dos que têm menores recursos e estão em risco de insucesso escolar. Sobre as dificuldades a Matemática, o psicólogo acredita que o facto de pagarmos tudo com cartão, comprar em pacotes e de termos deixado de fazer contas faz com que se estejam a perder as bases do pensamento aritmético.
Um aluno com dificuldades na leitura será sempre um aluno com dificuldades a Matemática e vice-versa?
Não necessariamente. Há alunos com dificuldades em leitura ou problemas de dislexia e que são bem-sucedidos a Matemática. Mas vai depender do meio social e cultural em que está inserido.
Porque é que os alunos tendem a ter mais dificuldades a Matemática, comparando com outras disciplinas?
A Matemática é uma disciplina altamente abstrata. Até a noção de número. Se olharmos para a história da matemática, percebemos que levou muito tempo até se desenvolver um sistema numérico. Há regiões na Amazónia em que nem sequer é usado. A aquisição da matemática é a aquisição de propriedades formais – número, uma ordem que pode ir até ao infinito, símbolos - e a aplicação de capacidades cognitivas a essas propriedades. É muito mais difícil do que ler, em que o processo é menos abstrato. É por isso que se torna mais complexo, até para os adultos.
Os testes internacionais de literacia mostram uma quebra no desempenho dos alunos um pouco por toda a Europa e Estados Unidos. É a consequência ainda dos anos da pandemia e do ensino à distância ou existem outras causas prováveis?
A pandemia acentuou esse declínio, mas a descida começou antes, tem vindo a acentuar e terá provavelmente várias explicações. Há um fator que não está a ser tomado em consideração e que tem a ver com o facto de termos deixado de lidar com números na vida real. Pagamos com cartão ou com o telemóvel, sem dinheiro físico, as coisas são compradas em pacotes de 6 e de 12 e não em unidades, deixamos de fazer cálculos porque usamos máquinas que os fazem por nós, seja a caixa registadora ou a máquina de calcular. Os nossos filhos estão a crescer em sociedade onde não se trabalha com números e as bases para a aquisição do pensamento aritmético estão assim a desparecer. Sem nos darmos conta, criámos um mundo no qual os números, a numeração, as operações básicas de aritmética não existem. E isso torna o trabalho dos professores muito mais difícil.
E o uso de equipamentos tecnológicos na escola? Ajuda ou prejudica?
Tem havido algumas investigações e os resultados ou são contraditórios ou mostram pouco impacto na melhoria das aprendizagens. Diria que nos anos mais avançados da escola, usar dispositivos e programas de computador pode ajudar. Mas não nos primeiros anos do ensino. Diria que é mais eficiente proporcionar nas escolas situações em que os alunos tenham de manipular dinheiro e simular experiências do dia-a-dia.
E em relação ao uso do telemóvel, desde muito cedo e como forma de comunicação. Isso faz com que a capacidade de leitura e de escrita sejam prejudicadas?
É possível que o uso de smartphones e de computadores possa ajudar a aumentar os hábitos de leitura. Mas não acredito que tenha um efeito positivo na escrita. O que sabemos atualmente, e há estudos que o demonstram, é que a melhor forma de aprender a escrever continua a ser através da escrita à mão. É uma forma muito mais eficaz e que está muito mais de acordo com os processos de aquisição da leitura.
Em Portugal, os testes nacionais estão todos a passar do formato em papel para o digital, com os alunos a fazerem provas de aferição no computador logo no 4º ano. Como olha para esta tendência de desmaterialização das provas?
Na minha opinião, devemos estimular sempre a escrita à mão até ao final da escola elementar [final do 6º ano no sistema educativo português]. Porque é a melhor forma de fazer ligações entre a leitura e a escrita. Não conheço bem a situação em Portugal, mas em França quase não há atividades relacionadas com a escrita. E isso reflete-se depois na capacidade dos alunos quando chegam à Universidade. O recurso cada vez mais frequente a testes de escolha múltipla prejudica a capacidade das crianças de desenvolver a escrita. Escrever frases completas, encadear ideias, é um treino que se está a perder. Não acho que isso seja uma coisa positiva.
Há uma luta desigual entre o estímulo imediato garantido pelos videojogos e redes sociais e o prazer que se pode retirar da leitura de um livro, que exige tempo e concentração. Como é que se incute o gosto pela leitura nos jovens?
A escola tem aqui um papel muito importante e deve de certa forma forçar as crianças e os adolescentes a ler, criando tempos e espaços para a leitura obrigatória.
E o papel dos pais?
Claro que a sua responsabilidade é muito grande. Mas conseguimos nós mudar a sociedade? Os pais passam o dia a trabalhar, estão cansados, chegam à noite e ficam a ver televisão, ou o telemóvel. E se não houver um exemplo por parte deles, não podemos achar estranho que os filhos tenham os mesmos hábitos. Por isso, na escola e em atividades extracurriculares seria mais fácil dar essa motivação, através de concursos, de grupos de teatro, grupos de leitura.
Fonte: Expresso por indicação de Livresco
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