segunda-feira, 27 de março de 2023

Especial Inclusão: até que ponto a frase “todos diferentes, todos iguais” se sente na lei e no quotidiano das pessoas com deficiência?

Portugal tornou-se no primeiro país europeu a aprovar uma estratégia nacional para as pessoas com deficiência e, a partir deste ano, as empresas com mais de 100 trabalhadores passaram a ser obrigadas a integrar pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. Mas o caminho para a inclusão é longo. Para discutir connosco estes temas recebemos em estúdio a Secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, a nutricionista e consultora para a diversidade e inclusão Catarina Oliveira e o co-fundador da “Access Lab”, Tiago Fortuna. A SE aponta para uma certa “cegueira branca” que persiste na sociedade perante a diferença, e deixa o aviso sobre a lei das quotas. “Tenham mesmo medo porque vem aí a multa. Vamos ser implacáveis com isto.” Ouçam-nos no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Este é mais um episódio especial. Desta vez dedicado à inclusão e à forma como a sociedade e os governos têm dado ou não respostas, e mais autonomia, apoio e lugar às pessoas com deficiência.

Até que ponto o bordão “todos diferentes, todos iguais” se sente na lei e se aplica na vida quotidiana? Somos uma sociedade cada vez mais inclusiva ou ainda bastante capacitista e discriminatória?

Para discutirmos este tema em estúdio recebemos a Secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, a nutricionista e consultora para a diversidade e inclusão Catarina Oliveira e o co-fundador da “Access Lab”, Tiago Fortuna.

Ana Sofia Antunes tem protagonizado uma nova era na política portuguesa lutando para que a integração e a inclusão deixem de ser verbos de encher e passem a estar mais na ordem do dia e no centro dos trabalhos da AR. Mas os avanços têm sido suficientes para esta comunidade? Foi o que discutimos logo no arranque deste podcast.

Importa dizer que Ana Sofia Antunes é a primeira Secretária de Estado cega, e das poucas pessoas a manter-se no cargo de SE nos 3 governos de António Costa. Combativa e activista pelos direitos dos deficientes Ana Sofia Antunes é autora da frase “Um país que não tem respeito pelos deficientes, não tem respeito por si próprio.” Na última vez que falámos neste mesmo podcast, em 2016, Ana Sofia Antunes chegou a considerar que a nossa sociedade estava contaminada por uma certa ‘cegueira branca’, como a descrita por José Saramago em “Ensaio Sobre a Cegueira”, uma maleita de vistas curtas que nos impedia de perceber os outros [diferentes de nós]. Esta realidade mantém-se?

“Não creio que esse tipo de fenómenos funcionem como um interruptor que ligamos ou desligamos. Nem creio que tudo fique dependente da adopção de medidas de política e daquilo que conseguimos efectivamente concretizar dia após dia. Creio que a sociedade tem de ganhar respeito pelas pessoas com deficiência, e o dever de promover a sua inclusão e a equidade, tratando de forma igual o que é igual e diferenciando na medida do necessário o que é diferente. Mas neste tipo de sociedade persiste alguma cegueira branca que está, acima de tudo, na cabeça de cada um. E, portanto, não é com a aprovação de normas e atos legislativos que conseguimos mudar a cabeça de cada um. É com vivências e experiências no dia a dia. É com o contacto com o outro."

A SE ainda alerta para a importância de desconstruirmos a rejeição natural e intrínseca que existe em cada ser humano no contacto com a diferença.

"Teremos muitas vantagens a partir do momento que conseguirmos tirar a diferença do obscurantismo e da segregação e trazermos as pessoas com diferenças e deficiências para a vida pública, tornando-as visíveis e permitindo-lhes desenvolver relações sociais de uma forma natural. Só assim é que as pessoas vão mudar mentalidades e se vão desfazendo aos poucos dessa sua cegueira branca. ”

E se podemos dizer que os Governos de Costa tomaram como ações emblemáticas a criação da Prestação Social para a Inclusão e a criação do Modelo de Apoio à Vida Independente, por outro lado foi notícia há um ano que o Governo falhara quase todas as metas de 2021 para inclusão de pessoas com deficiência. Quais as razões para tal? E o que tem mudado desde aí? Por exemplo, a lei das quotas para contratar pessoas com deficiência está a ser aplicada? A Secretária de Estado foi questionada a isto e muito mais e chega a afirmar:

“Posso anunciar já aqui em primeira mão que o apoio ao auto emprego vai estar no pacote de apoio à empregabilidade de pessoas com deficiência. Espero mesmo que seja para o mês de abril. Não terá só a ver com empreendedorismo, é uma das medidas. Estamos a reformular as medidas de apoio às pessoas com deficiência. No sentido de incrementar os valores dos apoios e sua duração, quando estejamos a falar das contratações sem termo e de rever medidas de fiscalidade e incentivos às próprias empresas. E trazemos novidades sobre contratação da administração pública.”

Sobre as fugas à fiscalização e contratação de pessoas com deficiência e do “ai vamos contratar senão vem aí a multa” a Secretária de Estado deixa o aviso:

“Tenham mesmo medo porque vem aí a multa. Vamos ser implacáveis com isto. Porque enquanto não houve multa andou toda a gente muito feliz a brincar às ações de sensibilização e, na prática, não vimos acontecer grande coisa...”

Catarina Oliveira, que é embaixadora da Associação Salvador e formadora na empresa “Access Lab”, tem uma deficiência motora adquirida aos 27 anos, provocada pela inflamação da medula óssea o que a levou a ter de passar a deslocar-se numa cadeira de rodas. Foi aí que se deu conta da discriminação e das barreiras impostas por um sistema capacitista em que estamos todos inseridos e que importa desconstruir.

Foi aliás esse o gatilho para que se afirmasse no Instagram com a página “Espécie Rara Sobre Rodas” - que já conta com mais de 40.000 seguidores e que pretende apontar responsabilidades, e não culpas, construir pontes, e não abismos, e educar para a inclusão e autonomia que deverá ser uma prática diária, já que a diversidade existe e só nos enriquece.

“Eu tenho sete anos de deficiência e muito humildemente digo, falando dos meus próprios preconceitos, que só durante estes sete anos é que estou verdadeiramente alerta para as questões da deficiência. E o meu trabalho também passa por aí no sentido de nós não precisarmos de fazer parte de uma minoria para estarmos alerta para a realidade dessa melhoria. Antes não tinha essa consciência social que deve ser de todos. Acho que já se fizeram avanços. Acho que falta muito por fazer, porque o caminho é longo, e árduo, não acontece de um dia para o outro e não tem fim. Porque a diversidade humana não tem fim. Vai haver sempre mais alguém a necessitar de algo específico para ele ou ela. Não posso negar os avanços que tenho visto e percebido ao longo destes sete anos e ao longo da luta das pessoas com deficiência. Sinto os avanços, mas continuo a sentir que a pessoa com deficiência ainda não consegue ocupar espaços. E falo de todos os espaços. É uma coisa muito estrutural. Ainda não há condições para as pessoas com deficiência ocuparem inúmeros espaços. O simples facto de sair à rua sozinha em determinadas zonas é-me impossível. Não me permite ocupar aqueles espaços.”

Tiago Fortuna, com uma doença óssea de nascença que o leva também a deslocar-se numa cadeira de rodas, é um melómano devoto da música pop e das deusas Madonna e Beyoncé, e anda há muito a defender a acessibilidade na cultura. Por isso, é um dos fundadores da Access Lab, uma start up de impacto criada em abril de 2022, para garantir o acesso de pessoas com deficiência ao entretenimento. E logo no arranque deste episódio deixa claro o paradoxo sobre a inclusão em Portugal. “Temos uma sociedade cada vez mais aberta, mas continuamos também a ter uma sociedade altamente preconceituosa. Fazes-me essa pergunta e eu estou a lembrar-me que há duas semanas, numa avaliação técnica, uma pessoa perguntou-me se eu devia trabalhar em eventos dada a minha condição de saúde. Isto diz muito sobre onde nós estamos enquanto sociedade. Eu disse-lhe que o facto de eu me levantar de manhã era um risco para a minha condição de saúde.”

A conversa segue por muitos outros caminhos e temas, discute-se sobre acessibilidade, capacitismo, inclusão, humor e algumas das medidas mais urgentes a serem aplicadas para dar mais autonomia e lugar às pessoas com deficiência em Portugal. E ficamos ainda a conhecer algumas das suas experiências pessoais, as músicas que os acompanham, partilhas literárias e não só. (...)

Fonte: Expresso, com fotos, por indicação de Livresco

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