As pistas começaram em criança, mas só aos 29 anos é que Sara Rocha teve o diagnóstico de autismo. Agora, com 30, partilha os desafios, a falta de apoio e de inclusão de pessoas autistas. A viver no Reino Unido, onde trabalha como gestora de dados em investigação médica para a Universidade de Cambridge, ajudou a criar a Associação Portuguesa Voz do Autista, lançada nesta sexta-feira. Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de entrevista, para assinalar o Dia da Consciencialização do Autismo.
“O diagnóstico do autismo nem sempre é fácil ou acessível. No meu caso, foi só aos 29 anos. Os estudos sobre autismo usam apenas homens; as mulheres são excluídas por questões hormonais, para supostamente não os ‘estragarem’.
O autismo é uma dificuldade na socialização e na comunicação e, obviamente, mulheres e homens têm formas de socializar diferentes. E a mulher tem características que fazem com que seja mais fácil escondê-lo: temos uma capacidade maior de mascarar os traços e imitar as pessoas que estão à nossa volta, para tentarmos parecer o mais normais possível e esconder as dificuldades. É algo que nem sequer reparamos que fazemos.
Em criança, pensa-se que as meninas são um bocadinho mais tímidas ou reservadas, e isso é mais aceite do que se acontecer com um menino. Esse tipo de socialização acaba por esconder e deixar passar as dificuldades e os traços autistas numa menina, mas quando acontecem num menino há um alerta.
No Reino Unido, existem cerca de 200 mil mulheres autistas, mas que não têm diagnóstico. Em Portugal serão mais, principalmente porque quando pesquisamos sobre o tema vemos uma enxurrada de desinformação. No entanto, já houve um grande aumento de autistas diagnosticados nos últimos anos, e continuará a subir.
No meu caso, quando era criança tinha todos os traços típicos de autismo. A única coisa diferente é que tinha hiperlexia, ou seja, comecei a ler sem ajuda desde muito cedo e a falar de forma muito formal. De resto, tinha todos os traços: não prestava atenção se chamassem o meu nome, não gostava de abraços, não gostava de afectos e até mesmo da palavra ‘amo-te’ dita pelos pais.
O que acontece é que quando as mulheres têm hiperlexia, apenas se pensa que são inteligentes. Como não são não-verbais nem demoram mais tempo a começar a falar, acaba por se perder a ideia de autismo — porque o diagnóstico ainda é muito focado na falta de verbalização, e na realidade não é bem assim. Há autistas que têm mutismo selectivo, que era o meu caso em criança: ficar não falante em casos sociais. E há também pessoas que preferem escrever, que não conseguem processar bem a fala.
Quando tinha seis anos, estas diferenças eram bastante óbvias, principalmente quando comecei a ir para a escola e não conseguia fazer amigos. A minha mãe adoptou um cãozinho e eu mostrava afecto para com ele, conseguia conectar-me de uma forma que não conseguia com as pessoas. Nessa altura, a minha mãe tentou o diagnóstico e disseram-lhe que eu não podia ser autista porque tinha amigos. Mas ela sabia que havia alguma coisa diferente.
Quando tinha 29 anos, já estava emigrada no Reino Unido, li um livro que falava do facto de os traços do autismo não terem sido baseados em mulheres, na altura em que foram estudados para o diagnóstico. Fiquei curiosa, fui pesquisar e compreendi que era exactamente quem eu era. Acabei por conseguir um diagnóstico depois disso. Antigamente, o meu autismo seria o Asperger, ou seja, o mais leve, mas hoje em dia já não fazem distinção.
Quando se fala de autismo, sinto que as pessoas se afastam imediatamente. Sempre disse que era como se se dissesse Bloody Mary três vezes no espelho — se o fizéssemos, ia aparecer um autista em casa. Ainda existe dificuldade em falar de autismo, é preferível esconder do que ter o desconforto de compreender o que é.
Existe desconhecimento, mas a informação está lá. Sabemos que é genético, sabemos que não é por causa de vacinas, sabemos que não é uma doença, que é o nosso cérebro que se desenvolve de forma diferente. Não existe uma cura porque é quem somos.
Há muitas dificuldades associadas ao autismo, principalmente na área da socialização, da comunicação e da percepção sensorial, porque sentimos o mundo de forma diferente. No entanto, também traz alguns pontos fortes. O que tenho visto noutros autistas, assim como no meu caso, é o activismo, a vontade de ajudar pessoas, empatia — ao contrário do que se pensa, os autistas são, na verdade, muito empáticos. A nível de trabalho, temos mais atenção aos detalhes, porque vemo-los antes de vermos o todo, enquanto as pessoas não autistas vêem ao contrário. Somos muito perfeccionistas. Acabamos por pensar um bocadinho fora da caixa.
Mas falta muito apoio. Para as crianças, há algum acesso às terapias, mas a partir dos 18 anos não existe apoio absolutamente nenhum. Precisamos de ajuda em termos de inclusão, de programas que realmente incluam autistas e de terapias para apoio psicológico. Como estamos a viver num mundo desenhado para outro cérebro, é, por vezes, um bocadinho difícil adaptarmo-nos à sociedade. Temos uma elevada incidência de doenças mentais, como a depressão, a ansiedade, uma taxa de suicídio nove vezes superior à de não-autistas.
As dificuldades a nível de saúde mental acabam por ser por causa da exaustão, de estarmos constantemente a mascarar, de não nos conseguirmos adaptar. De certa forma temos uma deficiência, mas não sabemos se nunca tivermos o diagnóstico e então acabamos por nos cobrar a nós próprios.
Também falta representatividade. No cinema, por exemplo. Há alguns anos, quando havia mais homofobia, utilizavam actores heterossexuais cis para fazer o papel de pessoas LGBTQ. E passavam estereótipos bastante prejudiciais para a comunidade. O mesmo acontece com o autismo. Nunca ninguém poderá fazer um papel de autista tão bem como um autista. Esta ideia de fazer algo sobre a comunidade, mas não incluir a comunidade, tem de acabar. ‘Nada sobre nós sem nós.’ Precisamos de alguém que seja autista para conseguir passar as subtilezas do que é ser autista. Não é possível passar o que é ter um cérebro diferente apenas por ver vídeos e tentar exagerar estereótipos. Só faz com que pareça que estão a gozar connosco.
É verdade que normalmente, ao crescer, temos as nossas estereotipias: o abanar as mãos, o balançar, o saltar. O meu era mexer na orelha, e sempre gozaram comigo por causa disso. Porque somos estranhos, porque é esquisito, porque não é normal. E o que acontece ao ver estes actores é que nós conseguimos ver perfeitamente que eles não são autistas porque o fazem de uma forma não orgânica, não é algo que eles compreendam a necessidade de fazer, apenas copiam.
Nesta sexta-feira, 2 de Abril, vamos lançar a Associação Portuguesa Voz do Autista. Sinto que em Portugal continua a haver uma vontade muito grande de confiar na voz de especialistas e de pais, em vez de incluir a voz dos autistas. Eu comecei o meu activismo, no entanto sou uma autista, ou seja, a minha experiência é baseada naquilo que eu senti. E cada autista tem diferentes experiências, necessidades e interseccionalidades que, obviamente, trazem problemas que outros autistas não têm.
Portanto, o que eu queria fazer era juntar diversos autistas e começar uma associação onde eles pudessem partilhar a sua voz, as suas necessidades, os seus pontos fortes, e criar projectos para aquilo que precisamos. Não virados para um modelo médico, apesar de também querermos continuar a puxar por mais acesso a terapias, mas acima de tudo para um modelo social. Criamos grupos de apoio para autistas, para mães, vamos desenvolver projectos na área da educação, de integração e universidades, no emprego. Queremos um pouco mais de apoio nessas áreas, estamos a sentir que necessitam mais activismo. Porque só quando começamos a compreender as dificuldades do autismo é que conseguimos saber como diagnosticar e apoiar.”
Fonte: Público
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