A medida política que conduziu à criação do ensino profissional e das escolas profissionais foi publicada há 30 anos. Joaquim Azevedo, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), protagonista direto da diretiva educativa, sobretudo entre 1987 e 1994, considera que há motivos para celebrar. O texto intitulado “Políticas públicas: uma arte de promover o bem comum. O caso das escolas profissionais e do ensino profissional”, publicado no relatório “O Estado da Educação 2018”, do CNE, é uma reflexão sobre o que esteve na origem desta medida, como foi formulada, aplicada, avaliada e atualizada ao longo dos anos. Olhar para trás é também olhar para a frente. Os desafios são exigentes, é preciso olhar para o futuro, continuar o caminho com “entusiasmo e esperança”.
“Somos hoje um país mais justo para com tantos milhares de jovens que de outro modo não teriam alternativa de estudos e entrariam em processos seletivos de insucesso e abandono e de exclusão social. A educação tem de promover a dignidade humana de todos e de cada um dos cidadãos e não se pode limitar a selecionar quem segue estudos aqui ou ali, centrifugando quem não se conforma com um modelo de ensino/aprendizagem que valoriza apenas uma ou duas dimensões da inteligência humana”, escreve.
Joaquim Azevedo, que foi diretor-geral do Ministério da Educação entre 1988 e 1992 e secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário em 1992 e 1993, faz uma retrospetiva e sublinha o “êxito” do ensino profissional. “Estes trinta anos volvidos asseguram-nos de que vale bem a pena construir um país melhor, mais justo e com pessoas profissionalmente mais qualificadas e humanamente mais realizadas”, sustenta. Sucesso que, na sua opinião, assenta em quatro pilares principais, a que chama os quatro “segredos”. O primeiro é ter escutado os principais protagonistas, ou seja, os jovens alunos, para conhecer forças e fraquezas da medida.
O envolvimento dos atores sociais é o segundo “segredo”. “Através de um novo compromisso solidário e cooperativo de centenas de instituições da sociedade portuguesa, de norte a sul do país, esse mesmo país que tantos dizem estagnado, incapaz e dependente, foi possível um desempenho notável neste empreendimento”. “Estas instituições foram os esteios que seguraram a vinha que tão belo néctar produziu e continua a produzir!”, acrescenta.
A negociação política para assegurar um amplo apoio à medida é o terceiro “segredo”. O quarto é a decisão política de considerar o ensino profissional um tipo de formação equivalente a qualquer outro, com a mesma duração e para o mesmo nível etário, “retirando-o o mais possível do tendencial menosprezo cultural com que o ensino profissional é considerado em Portugal (como em outros países europeus, sobretudo do Sul da Europa)”. “Sabíamos que estávamos a responder a necessidades e possibilidades concretas, de pessoas concretas e de instituições concretas. Criámos um modelo adequado a esta realidade concreta, que foi auscultada, estudada, negociada, projetada”, resume.
Fomentar a motivação e o trabalho
Ao fim de 30 anos, é preciso mudar quase tudo. O país mudou, o mundo também, e o país não pode meter a cabeça na areia e pensar que a escola tem de ser como sempre foi. Joaquim Azevedo adianta o que pode ser feito. No modelo de ensino, é importante reforçar a inovação pedagógica que, na sua perspetiva, “foi sempre uma marca do ensino profissional”. E isso implica “compreender melhor o porquê e o para quê se ensina o que se ensina, trabalhar mais e melhor em equipa pedagógica, desenvolver a ‘aprendizagem modular’, o trabalho interdisciplinar e multidisciplinar e os ‘projetos integradores’”. “Se secamos a fonte da inovação pedagógica temos de perceber que fazemos secar o futuro do ensino profissional, a esperança que sempre transportou na educação em Portugal, independentemente das ‘boas razões’ invocadas para isso, como as dificuldades financeiras”, avisa.
Os alunos têm de ser, cada vez mais, protagonistas nas escolas e nos cursos. Os alunos de hoje não são os alunos de há 30 anos. É preciso rever modelos de participação e, além disso, continuar a formar profissionais competentes. “Os jovens precisam de ambientes muito positivos de aprendizagem, que fomentem a motivação e o trabalho constante e dinâmico, ambientes de trabalho sério, de autonomia, esforço e alegria, que promovam a aquisição permanente de conhecimentos e de competências para a vida, ambientes colaborativos e de incentivo mútuo”.
Quanto à organização, o conselheiro de educação assegura que é imprescindível que as escolas se liguem mais entre si, até mesmo com um novo tipo de contratos-programa, pensados mais na horizontal. “As escolas, ontem como hoje, não podem ficar à mercê dos ventos ministeriais de cada momento, têm de se antecipar e organizar, com autonomia e liberdade, ousadia e coragem”. A revisão da rede de ofertas, acabando com a separação entre o IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional) e o Ministério da Educação, é essencial, bem como a dignificação social e política deste ensino atualmente frequentado por 35% dos alunos do Secundário.
“O alargamento da oferta de cursos profissionais às escolas secundárias, em boa hora realizado, após 2004, foi concretizado de modo precipitado e demasiado rápido e impositivo, o que fez com que aquelas escolas secundárias que nunca deixaram de ser matricialmente liceus os tivessem tomado como um bom ‘caixote do lixo’ para os ‘alunos do insucesso’ que essas mesmas escolas vão gerando”, comenta.
Oportunidades de educação e formação
São 30 anos, governos sucessivos, diferentes orientações políticas, e um projeto que se mantém. A medida surge num contexto. Em 1986, Portugal tinha acabado de aderir à União Europeia, havia mais recursos disponíveis para a qualificação profissional, o crescimento económico e o desenvolvimento social surgiam como promessas. Nessa altura, a taxa de escolarização no Secundário era de cerca de 30% e a maneira, quase exclusiva, de seguir estudos para além do 9.º ano era o ensino secundário geral. Em 1983, tinha sido lançado o ensino técnico-profissional, “modelo ainda muito incipiente, que não constituía uma verdadeira e cativante via complementar do ensino geral/liceal”.
Em 1986, e na sequência da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo, ficou claro que era imprescindível, em nome da equidade, da igualdade de oportunidades e da justiça, diversificar as oportunidades de educação e formação dos jovens, após a conclusão do 9.º ano. O abandono escolar era muito elevado e o insucesso envergonhava a política de educação de Portugal, “tal era o desfasamento entre o que se oferecia e o que os jovens desejavam e tinham possibilidade de realizar com sucesso”. A Comissão de Reforma do Sistema Educativo, criada pelo Governo, estudou a problemática e “modalidades equivalentes e não discriminatórias de ensino e formação, após o 9.º ano”. Pediam-se vias para a qualificação de técnicos intermédios, um ensino mais capaz de aproximar os jovens do mundo do trabalho.
“O imperativo era, pois, ético e político: era preciso combater os níveis de insucesso escolar e de abandono escolar, sem paralelo na União Europeia, promovendo uma educação mais equitativa e uma maior igualdade de oportunidades. A desmotivação e o desinteresse dos jovens por um ensino liceal e livresco eram genuínos e profundos, impedindo a realização pessoal de muitos adolescentes. O terreno apresentava-se, assim, favorável à diversificação de percursos de educação e formação após o ensino básico de nove anos”.
O trabalho avançou. Ouviram-se os alunos, suas perceções e expetativas face à escolarização, através de inquéritos em larga escala. Conclusão: dos 84% jovens que queriam continuar a estudar, 24% a 30% queriam fazê-lo num tipo de ensino mais prático e ligado à preparação para o exercício profissional. Avaliou-se a política que estava em marcha, o chamado ensino técnico-profissional, auscultando alunos, pais, professores, empresários. Estudaram-se casos de vários países europeus e o modo como enfrentaram problemas idênticos. Era preciso definir um modelo, formular um quadro normativo nacional, e implementá-lo no terreno. “Foi preciso desenhar o sonho, formular a esperança, dar-lhe corpo inteiro: cabeça para seguir de modo orientado, braços para acolher todos os atores disponíveis e pernas para andar e não tropeçar na primeira dificuldade”, recorda Joaquim Azevedo.
Criaram-se as escolas profissionais para abrir outro tipo de oportunidades educativas para os jovens, definiu-se que a qualificação obtida nestas escolas e neste tipo de ensino seria equivalente ao 12.º ano e daria acesso ao Ensino Superior, procurou-se que a oferta de cursos e percursos fosse ao encontro de diversas necessidades de formação e de realização pessoal dos jovens (ensino artístico especializado, música, dança, teatro, artes circenses, mecânica ou informática, multimédia ou design).
Nos primeiros anos, a medida foi permanentemente avaliada por entidades independentes e pelos serviços do Estado. Joaquim Azevedo lembra que “a trajetória foi corrigida em alguns aspetos”. A medida prosseguiu. “Nestes trinta anos, centenas de milhar de jovens portugueses (quase meio milhão) tiveram e estão a ter a oportunidade de seguir a sua formação numa modalidade de aprendizagem mais prática e experimental, mais integrada entre teoria e prática, escola e trabalho, disciplina e projeto, uma formação mais ligada aos contextos de vida, qualificação essa que nunca impediu o prosseguimento de estudos para aqueles que o desejassem realizar (no momento ou mais tarde, após uma experiência de trabalho)”, sublinha.
Fonte: Educare
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