“Estava tranquilo”, conta ao Expresso, “antes e durante” a defesa da tese. Era quarta-feira, dia 2 de outubro. No Colégio da Trindade e ao lado de Java, a cadela-guia que, desde 2018, o acompanha, Pedro Amauri de Oliveira fazia história. Tornou-se o primeiro aluno cego a concluir com sucesso o curso de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – e a imagem do aluno trajado na sala solene, com Java a dormitar ao seu lado tornou-se viral.
Poucos dias depois, a sensação é de “alívio” e “realização pessoal e profissional”. “Não foi uma jornada fácil”, diz. Os obstáculos a este objetivo que, conta, “parecia inalcançável a certo ponto” teimavam em surgir.
Natural de Curitiba, a capital do Estado do Paraná, nasceu e cresceu no Brasil e foi aí, do outro lado do oceano, que começou os seus estudos em Direito. Seria uma “reação alérgica a um medicamento” a colocar Portugal no seu rumo. Era 2010 e Pedro Amauri de Oliveira estava no fim do primeiro ano da Licenciatura em Direito, quando foi diagnosticado com síndrome de Stevens-Johnson, uma doença rara e grave. Em consequência, “veio a deficiência visual”.
Pedro Amauri de Oliveira deixou os estudos. “Era uma situação nova a que tinha de me adaptar”. Para além disto, a instituição em que estava inscrito “não oferecia nenhum apoio a estudantes com deficiência visual”. “Não podia continuar”, recorda.
Mas continuou: quatro anos depois, em 2014, voou para Portugal. A Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra oferecia um “serviço de conversão de livros em suporte físico para suporte digital” que lhe tornaria possível, com recurso a um “software de leitura de ecrã”, “ouvir a bibliografia”. Era algo essencial, principalmente “num curso que requer muita leitura”.
Foi na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra que se licenciou e tornou Mestre em Direito, com especialização em Ciências Jurídico-Empresariais. Entretanto, rumou a Utrecht, nos Países Baixos, e à Corunha, em Espanha, para realizar dois seminários de verão.
Logo aqui percebeu que era “muito curioso” e o interesse pela área da investigação foi crescendo. Prosseguir os estudos para um doutoramento era a opção natural. E, por isso, em 2018, imediatamente após a conclusão do mestrado, candidatou-se ao doutoramento na mesma instituição.
Para tema da tese, em Direito Público, escolheu a harmonização do Direito de Trabalho da União Europeia. E, a partir daí, os marcos foram-se sucedendo. Logo em 2019 foi o “primeiro candidato com deficiência visual a obter a bolsa de investigação da Fundação de Ciência e Tecnologia” e, em 2022, conseguiu obter a bolsa Fulbright que o levou até à Universidade de Columbia, em Nova Iorque, para realizar um estágio doutoral. Entretanto, assinou também, artigos e capítulos de livros, mantendo o Direito do Trabalho como principal foco de investigação e não esquecendo, em especial, o tema da proteção dos trabalhadores com deficiência.
Orientador elogia determinação
“Procurou aproveitar ao máximo as oportunidades que tinha”, afirma Jónatas Machado, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e orientador da tese de Doutoramento de Pedro Amauri de Oliveira. “Nada o detinha, nada o perturbava”, “sempre deu mostras de grande foco, determinação, confiança e autonomia”, acrescenta.
Ainda assim, os seis anos que antecederam a defesa da tese não se passaram também sem algumas barreiras. O trabalho de conversão dos livros para suporte digital “demora algum tempo” e, por isso, Pedro Amauri de Oliveira “não tinha acesso imediato à bibliografia”, o que acabou por atrasar a investigação.
Também por isto, o culminar de anos de trabalho no momento que viveu no Colégio da Trindade “mostra que todos somos capazes de ir além, de contornar os obstáculos e alcançar objetivos e sonhos”. Isto, reforça, “se tivermos resiliência, determinação e, claro, as adaptações, apoios e ferramentas necessárias para conseguir desenvolver os estudos”.
O agora doutor foi já parabenizado nas redes sociais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que caracterizou o momento como um “marco histórico”. Nos comentários, são muitas as mensagens de felicitação e admiração.
“É sempre um motivo de grande júbilo e orgulho para todos nós quando qualquer um dos nossos estudantes conclui com sucesso as suas provas académicas”, refere Jónatas Machado, que salienta “no caso do Doutor Pedro Oliveira, essa alegria tem um sabor especial, porque, temos de reconhecer, o percurso dele foi mais difícil e trabalhoso”.
Para Pedro Amauri de Oliveira, ser o primeiro aluno cego a concluir o Curso de Doutoramento “é uma honra e responsabilidade”. Espera, com o feito, “poder inspirar muitas pessoas jovens, com ou sem deficiência”.
Pedro Amauri de Oliveira “sempre mostrou convicções fortes acerca da criação de um mundo mais justo e solidário, especialmente atento aos mais vulneráveis”, afirma Jónatas Machado. “Ao mesmo tempo”, acrescenta, “tinha a vontade férrea de usar a sua formação jurídica para promover as causas em que acredita e que, no fundo, também são as nossas”.
Com 34 anos, Pedro Amauri de Oliveira ambiciona “continuar a trabalhar na área de investigação”, que pensa ser “ainda um pouco negligenciada em Portugal, sobretudo no domínio jurídico”. Em particular, quer desenvolver estudos numa das áreas que mais o “preocupa e afeta”: “o direito das pessoas com deficiência”.
Fonte: Expresso
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