terça-feira, 9 de maio de 2023

Manel saltou as barreiras impostas pela trissomia 21

Manel nasceu em 1993 com trissomia 21, mas viveu sempre do outro lado dos estigmas associados à doença. Tirou a carta de mota aos 14 anos e, apesar de deixar a mãe “com o coração do tamanho de uma ervilhinha”, andou anos de mota; tirou a carta de ligeiros aos 18 anos e conduz todos os dias — “dizem-me que sou caso único na Europa” —, estudou no ensino regular, trabalhou com cavalos e cães e é agora tripulante de um serviço de ambulâncias de transporte de doentes não urgentes. Conheceu Inês no emprego há meia dúzia de anos, começaram a namorar em 2018, a viver juntos há três anos e casaram-se há quase dois meses, a 18 de Março. Estão a planear ter filhos, mas só para o ano.

O amor em São Martinho do Porto corre na família. Foi lá que se conheceram os pais de Manuel Maria Neiva Correia Santos Leão Gonçalves, nascido em Lisboa a 24 de Julho de 1993. “Manel”, como é conhecido, é o terceiro de quatro filhos, o único que nasceu com trissomia 21 numa família enorme (a mãe tem oito irmãos e o pai, seis) e tem aproveitado a vida para ser feliz, saltando as barreiras, ainda bastante altas, que a sociedade impõe aos portadores da síndrome de Down.

Ajudou ter uma família que tentou sempre tratá-lo de forma igual aos demais, depois dos primeiros anos mais complexos por terem de lidar com um universo totalmente desconhecido, uma doença que acarreta tantos estigmas.

Como diz a mãe, Constança, ajudou ter “como rampa de lançamento” a creche A Tartaruga e a Lebre, estrutura de educação especial da APPACDM, em Lisboa. E ter uma família que evitou ser uma das grandes barreiras dos portadores de trissomia 21. “É uma condição que desgasta muito as famílias, que cansa muito. E, depois, acabam por colocar barreiras devido ao cansaço. Tirar a carta? Não, assim já está bom”, contextualiza Constança.

Dessa rampa, Manel aproveitou o embalo para saltar para a vida de forma feliz e com sentido crítico perante o tratamento discriminado a que ainda hoje é sujeito, especialmente, diz, dos mais novos.

Estudou no ensino regular, na capital, até chegar à Escola Profissional Agrícola D. Dinis, em Paiã, na Pontinha. Aí, tirou um curso técnico-profissional de tratador desbastador de equinos. Foi estagiar para Alcobaça. Ali perto, trabalhou com cavalos na Quinta do Pinheiro, em Valado dos Frades, freguesia do concelho da Nazaré, a cerca de 15 quilómetros de São Martinho do Porto, onde agora reside.

A Quinta do Pinheiro é um dos lugares marcantes da vida de Manel. Foi lá que conheceu Inês, que era à data colega de trabalho. Depois, a 12 de Abril de 2018, Inês declarou-lhe amor por carta, um dia depois de ler o livro de prosa e poesia, em registo diarístico, que Manel publicou um ano antes: Abri as Minhas Asas... E voei para além da trissomia 21, de Manuel Gonçalves, com ilustrações de Ana Luísa Frazão, foi editado pela Câmara Municipal de Alcobaça, em 2017.

Aos 29 anos, Manel está casado de fresco com Inês, com cerimónia religiosa em São Martinho do Porto e festa na Quinta do Pinheiro, claro. Vive em São Martinho, vila do concelho de Alcobaça, onde os seus avós e pais se conheceram, nas férias de Verão que as respectivas famílias passavam ali.

Agora, chegou a vez de Manel conhecer o amor em Inês Raquel Delgado Leão Gonçalves, mais nova 29 dias, que nasceu nas Caldas da Rainha (e foi registada em Turquel) a 22 de Agosto de 1993, tendo vivido quase toda a vida em Alcobaça. Juntos, são uma fonte de cumplicidade e exigência mútua, aquela exigência a que Manel se habituou desde menino. “Exigíamos-lhe o mesmo que aos irmãos”, pontua a mãe.

Conheceram-se a trabalhar como tratadores de cavalos na Quinta do Pinheiro, em Valado dos Frades. É desde a vila de São Martinho do Porto, onde hoje vivem casados e na companhia de duas gatas, um casal de caturras e outro de periquitos, que falam com o PÚBLICO.

Falam sobre a vida e os planos que dela se fazem, sobre poesia, sobre animais, sobre como a trissomia 21 ainda é olhada com tanto preconceito. “Que coisas gostava de mudar? É quase impossível, mas gostava de mudar as mentalidades. Por exemplo, gostamos ambos muito de doces, mas nem sempre podemos comprar ou comer, como toda a gente. Quando vamos ao supermercado e eu digo que não ao Manel, que não podemos comprar, as pessoas ficam a olhar. Algumas perguntam: ‘É cuidadora, está a cuidar do menino?’ Eu respondo: ‘Não, é o meu namorado, o meu marido.’ E ficam surpreendidas”, aborda Inês.

Manel aquiesce. E acrescenta a “hipocrisia das pessoas”. Causa-lhe especial mágoa o tratamento que lhe reservam as crianças. “Os bebés são como os cavalos. Têm de ser ensinados que nós não somos maus, somos bons. Às vezes, magoam-me. Sinto que os mais velhos têm mais tolerância.”

Como diz a mãe, corroborada por Manel, este “dá o seu testemunho porque há muitas crianças que precisam de ter as oportunidades dele, desde muito cedo”. As oportunidades de tentar e falhar como qualquer pessoa. De servir de exemplo a quem nasce com mais ou menos limitações. E a história de Manel é um bom caso de estudo e, igualmente, de inspiração. Manel sente legitimamente que pode reclamar o seu lugar no mundo. Nas pequenas e grandes coisas que todos ambicionamos atingir.

Inês, que aprendeu a lidar com algo que já não lhe era inteiramente desconhecido, a trissomia 21 do seu namorado, companheiro e marido, consubstancia a influência que Manel tem na vida dos outros. Desde logo, na sua própria vida. “Já tinha alguma experiência de contacto com pessoas portadoras de trissomia 21. Uma das coisas que mais me surpreenderam no Manel era ele ter a carta de condução. As pessoas [com síndrome de Down] que conhecia nem sequer trabalhavam, quanto mais fazê-lo numa área que é tão difícil, como é trabalhar com cavalos”, confessa. E assume: “Eu só tirei a carta de condução porque ele e a família me convenceram”, ri-se.

Inês, que já trabalhou em restaurantes e com animais, é hoje em dia auxiliar num centro de dia para crianças e idosos. Mas são os seniores que a conquistam, com a sua experiência, histórias de vida e sabedoria. Ela que perdeu o pai aos três anos e uma irmã em Setembro, tendo encontrado na família de Manel uma extensão da sua própria, uma soma de afectos e de coragem.

Por aqui, já se percebem bem as muitas barreiras sociais que Manel teve de saltar para viver bem consigo e com os outros. Mas há mais. Como é o caso da publicação do seu livro em 2017. “Fiz a escola primária no colégio inglês em Lisboa. Tinha uma professora que dava as aulas com poemas e poesia. Foi aí que descobri o gosto por escrever e que pensei estar num mundo à parte”, atira Manel. Num mundo à parte, mas não à parte do mundo: através de amigos da família, conseguiram reunir os textos em prosa e poesia que Manel escreve desde criança e publicá-los num livro.

A pensar ter filhos

Segundo a lenda do provérbio árabe, para atingir uma vida completa, além do livro é preciso plantar uma árvore e ter um filho. Sempre muito ligado à natureza e aos animais desde cedo, tendo trabalhado com cães e com cavalos, com as árvores como testemunhas, faltará a Manel gerar descendência. Mas, segundo o casal, não faltará assim tanto: está planeado para o próximo ano.

Agora, o momento é para absorver todas as emoções dos últimos tempos, do namoro a irem viver juntos, do casamento aos desafios pessoais e profissionais. Da algazarra da vida em casa, com a bicharada. “Parece um jardim zoológico. Temos duas gatas, um casal de caturras e um casal de periquitos. As gatas são as guardiãs das aves. Quando vivíamos na outra casa, soltávamos os pássaros e elas nunca os atacaram”, tranquiliza Inês, por entre gargalhadas.

Há três anos a viver juntos, Manel e Inês tentam encaixar a vida conjugal com empregos exigentes. O dele, especialmente por causa dos horários. O transporte de doentes pode levá-lo a locais tão distantes como Lisboa (a cerca de 100 quilómetros de casa), o que significa que, em muitos dos dias de trabalho, o horário de saída (17h00) é esticado por várias horas.

Tudo isto, somado à necessidade de explorar a juventude e de conjugar as experiências pessoais com as do casal, atira outros planos para mais tarde. E há uma grande, mais outra, barreira enorme e exigente que Inês e Manel terão pela frente: serem pais.

“Queremos ter descendência, sim. Estamos a pensar nisso e decidimos que só vamos dedicar-nos mais de perto a isso daqui a um ano”, diz Inês, apoiada por Manel. “Já vivíamos juntos há três anos e agora casámo-nos, mas só vamos pensar mais a sério nisso para o ano”, prossegue Inês.

Manel vai acenando afirmativamente com a cabeça e apoiando os planos enunciados pela mulher. “Quem corre por amor não cansa”, acrescenta, num tom algo malandro. E quantos filhos, já pensaram nisso? “Vamos indo e vamos vendo”, dizem quase em simultâneo. E riem-se.

Um sinal de que estão a pensar seriamente no assunto? “Até já temos três nomes”, atira Inês. Mas estes nomes são mais do que planos para o futuro: são homenagens muito emocionais a pessoas que já morreram e deixaram muitas saudades.

No caso de Manel, foi a perda do irmão mais novo, Henrique, que morreu aos 16 anos na sequência de um acidente de mota. O irmão com quem tinha uma afinidade muito grande, segundo a mãe. “A primeira vez que chorou foi num dia em que o irmão entrou em casa e não o cumprimentou”, recupera Constança.

Inês, como se referiu, ficou sem pai aos três anos. No ano passado, morreu-lhe a irmã, depois de já ter perdido um primo em 2020. Estas perdas não foram esquecidas por nenhum dos dois e são uma parte muito importante do plano para gerar descendência.

Os nomes são Henrique, como o irmão que Manel perdeu, Pedro António, que era o nome do primo de Inês que morreu há cerca de três anos, e Margarida Raquel, um cruzamento entre o nome da irmã falecida há cerca de meio ano, Dália Margarida, e o segundo nome de Inês – Raquel.


Fonte: Público

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