domingo, 8 de agosto de 2021

Entre a liberdade e a frustração: aceder à cultura quando se tem uma deficiência

Foi aos 27 anos que perdeu a visão, mas Graça Santos já conhecia esse fado desde a adolescência. “Aos dez anos fui diagnosticada com retinite pigmentar e aos 14 soube que ia cegar”, explica. Em 2012, com 45 anos, lesionou a coluna numa queda e passou a deslocar-se em cadeira de rodas. É uma das 1.792.719 pessoas que vivem em Portugal com algum tipo de deficiência ou incapacidade, segundo o Censos de 2011. E que nem sempre têm a vida facilitada na hora de assistir a uma peça de teatro ou de ir a um concerto.

Graça é assídua nas sessões acessíveis do Teatro Nacional D. Maria II e do São Luiz Teatro Municipal, porque a audiodescrição lhe permite ouvir o que não pode ver. “Levou-me de volta ao teatro”, conta. Um amigo viu um anúncio de uma sessão com audiodescrição e convidou-a. Depois, ficou a saber que estes dois teatros tinham o recurso e começou a frequentá-los. Num mesmo fim-de-semana acontece poder ir no sábado ao São Luiz e no domingo ao D. Maria II. “Uma maravilha”, exclama.

Ali sente-se “segura”, diz Graça, que é acolhida naqueles espaços por profissionais que a conhecem e guiam até ao seu lugar. “Sou recebida como uma princesa”, frisa, sorridente. “A equipa está sempre à minha espera. Nunca me sinto em terreno alheio. Faz-me sentir muito bem. Até já me convidaram no D. Maria II para fazer um vídeo e apresentar a programação.”

No São Luiz o piso é plano, sem degraus; no D. Maria II existem plataformas elevatórias para chegar à sala. “Antes de ficar em cadeira de rodas ia a mais alguns [teatros], agora não. Já me aconteceu chegar e ter de me vir embora por apenas existirem escadas; também já aconteceu ter perguntado antes se tinham elevador, dizerem que sim, e afinal não tinham. Nesse dia entrei ao colo dos bombeiros.”

Um trabalho de fundo

Cerca de 50% dos 86 milhões de pessoas que vivem com alguma deficiência ou incapacidade na União Europeia já se sentiram discriminados, segundo nota a Comissão Europeia no documento União da Igualdade: Estratégia sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência 2021-2030. Em Portugal, a associação Acesso Cultura promove a acessibilidade cultural, o que significa, por exemplo, criar condições físicas nos espaços para receber espectadores com incapacidade, capacitar profissionais, promover sessões com Língua Gestual Portuguesa (LGP) para pessoas Surdas e de audiodescrição para pessoas cegas ou com baixa visão, e facilitar a aquisição de bilhetes, dado que muitos precisam de um acompanhante.

“Reconhecendo as melhorias, não podemos ignorar que a maior parte da oferta cultural (edifícios e programação) não é acessível”, afirma Maria Vlachou, directora executiva da Acesso Cultura, acrescentando: “Nos últimos anos houve abertura de mentalidades e foram dados passos importantes em algumas organizações culturais como o Teatro Nacional D. Maria II e o São Luiz.”

Em 2007, o São Luiz Teatro Municipal foi a primeira instituição cultural portuguesa a programar regularmente sessões interpretadas em LGP. Até então o público Surdo não tinha oferta nas artes performativas. Outras instituições têm vindo a criar iniciativas de inclusão, como o Teatro Nacional S. João, no Porto, o Teatro do Bairro Alto e o Lu.Ca – Teatro Luís de Camões, em Lisboa, ou o Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana do Castelo. “Não podemos pedir às pessoas que venham e depois criar-lhes barreiras. É um contra-senso”, afirma Nuno Santos, responsável de acessibilidade no São Luiz.

Na temporada 2019-2020, o São Luiz acolheu na plateia mais de 400 pessoas com deficiência e Surdas, em 50 sessões acessíveis. Ainda que os números sejam expressivos, para Nuno Santos “nada está feito”. Haver um orçamento anual para acessibilidade foi ainda assim “um passo fundamental”. “Faz parte do funcionamento do teatro – é um serviço. Tal como a segurança ou a limpeza. Trouxe-nos autonomia”, explica.

No último trimestre de 2020, a média de espectadores com alguma deficiência em sessões acessíveis do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) era de 30 pessoas, o que representa 15% da capacidade das sessões, numa lotação máxima de 197 pessoas. “Quanto mais se trabalha uma área, mais nos apercebemos do que está por fazer. O trabalho que realizamos anda devagar mas quando avançamos não voltamos atrás”, diz Ana Ascensão, directora de relações externas e frente de casa do TNDMII.

No entanto, também é preciso criar hábitos. “Não é por termos uma sessão acessível que vamos ter pessoas com deficiência e Surdas no teatro”, sublinha Ana Ascensão. Porquê? “Se as pessoas nunca vieram não vão começar a vir de repente. Temos de criar o hábito junto de quem não conhece o teatro, é um trabalho de fundo.”

“Enfrentar um batalhão”

“Apaixona-me estar perto do palco, sentir os graves no peito e olhar os músicos nos olhos”, diz Raquel Banha, mestre em Marketing Digital. Para ela, porém, “ir a um concerto significa estar preparada para enfrentar um batalhão, caso seja necessário”. Tem 24 anos e vive com uma doença neuromuscular congénita, deslocando-se em cadeira de rodas.

“Muitas pessoas com deficiência não conseguem ir a lado nenhum sem acompanhante. Os bilhetes são pagos a dobrar e o custo recai na pessoa com deficiência”, explica. Foi por isso que assistiu aos concertos de 30 Seconds to Mars e Ed Sheeran, em Lisboa, sozinha, correndo riscos de segurança, mas marcando uma posição. “Se não está previsto na lei, as empresas têm uma responsabilidade cívica acrescida. Ninguém deve ser prejudicado social e economicamente por ter uma deficiência”, acrescenta.

Raquel vive intensamente os espectáculos a que assiste, sente-se livre na Festa do Avante, diz já ter chorado num concerto de Sérgio Godinho, e recorda a noite em que viu Tove Lo na primeira fila com uma amiga: “No meio da confusão. Senti-me em pé de igualdade com todo o público.” Refere esta experiência porque “não basta colocar uma plataforma elevada no meio da plateia, é preciso criar opções de escolha”. E reforça: “Num recinto grande, existem bilhetes para inúmeros sectores. Quando chegamos aos lugares acessíveis, normalmente só existe uma opção.”

Há um episódio “traumático” que não esquece, num concerto de Maroon 5, aos 15 anos: “Chorei de raiva e frustração.” Tinha chegado cedo ao recinto, posicionando-se perto do palco. “Fui retirada da plateia, quase à força, e escoltada até à única zona reservada para mobilidade condicionada. No final ofereceram-me uma t-shirt a dizer ‘produção’”.

Fazer parte

Mas o que procura Raquel? Maior eficácia e formação no acolhimento de pessoas com deficiência, diversidade de escolha na atribuição de lugares, a entrada sem custos de assistentes pessoais (que não é uma política transversal em Portugal, apesar de algumas organizações já estarem a implementar a medida). Numa palavra: equidade.

No Reino Unido estas são práticas habituais. Na música, salas como a O2 Arena ou a Roundhouse, por onde passam muitas das digressões apresentadas também em Portugal, há uma política de entrada sem custos para assistentes pessoais, mais do que uma zona destinada a pessoas com deficiência, e interpretação dos concertos em Língua Gestual. De acordo com relatórios da organização Attitude Is Everything, ao implementar este tipo de medidas o Reading Festival aumentou a venda de bilhetes para pessoas com deficiência em 111% de 2012 para 2013. O Glastonbury Festival, numa carta assinada pela directora, em 2016, em que detalha as medidas aplicadas, contabilizava então 600 espectadores com deficiência e Surdas no público e 100 integradas em equipas de trabalho.

Cláudia Nóbrega é responsável de acessibilidade do Boom Festival e Presidente da Associação Partilhar Distâncias. Além do Bons Sons, o Boom Festival é o único festival de música em Portugal com uma política de entrada sem custos para assistentes pessoais de pessoas com deficiência.

“Para nós não está em causa perder uma receita. É conferir um direito humano e fundamental. Não podemos ver apenas o lado económico, se olharmos assim perde-se uma entrada mas são duas pessoas a consumir bens e serviços no festival”, argumenta Cláudia.

Recentemente o festival recebeu um pedido de interpretação em Língua Gestual e decidiu contratar intérpretes: “De repente, tínhamos 70 pessoas a pedir interpretação em Língua Gestual, a mensagem passou entre diversos países. Foi espantoso como crescemos numa nova área”, conta.

Em 2019 decorreram 287 festivais de música em Portugal, nos quais participaram 2,1 milhões de espectadores, de acordo com a Associação Portuguesa de Festivais de Música. Não existem dados sobre a satisfação ou a participação de pessoas com deficiência. Raquel Banha levanta várias questões que gostava de ver espelhadas no panorama geral, o Boom Festival dá-lhes corpo e traça um possível caminho a seguir.

“É uma aposta na sustentabilidade social. Se os eventos têm rentabilidade também devem ter dinâmica social”, diz Cláudia, lançando um repto aos seus pares: “Escutem o público. O público vai trazer inclusão. Existem ajustes razoáveis a fazer em função daquilo que o público nos pede.”

Os responsáveis do Boom Festival, do TNDMII e do São Luiz dizem que o número de espectadores com deficiência e Surdos têm vindo a aumentar. Sentem necessidade de trabalhar a inclusão de artistas com deficiência. Cláudia Nóbrega conta que a equipa se emocionou quando conseguiu colocar um DJ em cadeira de rodas a actuar no palco do Boom. Ana Ascensão refere a uma audição aberta a artistas com deficiência no D. Maria II, em 2021, que mobilizou 400 candidaturas.

E o futuro? É preciso estimular a participação cultural e a exigência imposta aos espaços. “É um triângulo: governos, espaços culturais e cidadãos. Cada um tem de fazer a sua parte”, diz Maria Vlachou. “Se tiver 20 cadeiras de rodas à porta do teatro, tenho de encontrar forma de acomodar as pessoas. Se no dia seguinte a situação se repetir, e no outro, em vez de 20, tiver 30, ou nos adaptamos ou temos a comunicação social a reportar (e bem!) as nossas falhas”, diz Nuno Santos.

Todos acreditam no activismo. Em derrubar barreiras e traçar outro rumo sectorial. “Nós temos de ser activos”, defende Graça Santos, acrescentando: “Não há nada melhor do que ser a pessoa com deficiência a dizer o que precisa. Depois de nós virão outras pessoas que já podem ter experiências melhores porque fizemos este caminho.”

O denominador comum entre os profissionais entrevistados e as pessoas com deficiência parece ser a busca pela liberdade que a cultura promete, mas que, num mar de experiências negativas, fica comprometida. O que se procura é a equidade e a garantia de direitos de acesso e usufruto da vida em comunidade. Sobre o dia em que apresentou a programação do D. Maria II em palco, Graça Santos resume a experiência em palavras universais: “É viver a sério. Convidarem-me para fazer parte.”

Fonte: Público

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