Há uns anos recordo-me de um jovem com dificuldades de aprendizagem que acompanhei dizer-me: “Devia haver uma forma de meter tudo isto na cabeça.” Referia-se às matérias escolares. E talvez o que retive mais desse momento foi a expressão não-verbal do miúdo. O ar triste, impotente e derrotado de quem recebe um resultado negativo num teste, não obstante trabalhar afincadamente e mais do que a maioria dos seus colegas. Mas, os conteúdos escolares são implacáveis e continuam a fazer demasiado apelo a uma capacidade que ele tinha em défice: a memória.
É inevitável falar sobre os currículos e manuais escolares e não falar sobre o conceito de “obesidade curricular”, que de forma generalizada e transversal aos diversos anos de escolaridade, os caracterizam. O conceito já por aí circula há algum tempo. É uma visão da educação centrada na importância de adquirir um conjunto enorme de conteúdos, como forma de preparar crianças e jovens para a vida.
Esta forma de olhar a educação lembra-me uns desenhos animados da minha infância: o Sport Billy. O Billy tinha uma mala desportiva que mudava de tamanho para se ajustar a todo o tipo de ferramentas multiúso que ele precisasse. Víamos sair e entrar tudo naquela pequena mala que, como por magia, rapidamente se agigantava. Naturalmente que adquirir um conjunto de informações é importante para o processo de aprendizagem de todos nós, não só no período escolar, mas também ao longo da vida. Mas, que peso deverá ser dado à memorização? Qual a dose certa?
Em 2015, o neozelandês Nigel Richards conseguiu um feito notável: vencer a edição mundial de Scrabble em francês, sem falar francês. Como foi isso possível? Por incrível que pareça Nigel (que já tinha sido campeão mundial de várias edições do jogo na língua inglesa) decorou o dicionário francês, com mais de 200 mil palavras, em nove semanas! Nigel poderá ter vencido o jogo, mas é incapaz de interpretar um texto literário na língua francesa. Ele “aprendeu” as palavras, sem saber o seu significado. Não deixa de ser um feito assinalável, conseguido em grande medida com recurso a uma capacidade ímpar de memorização. Não obstante, questiono até que ponto poderá isto ser considerado uma aprendizagem.
Nesta “era de silício” onde as tecnologias e o digital estão cada vez mais presentes nas nossas vidas e em que o “novo normal” é estarmos ligados “à corrente”, quase em permanência, é inevitável a associação desta história aos avanços no domínio da Inteligência Artificial. Claro que Nigel passaria certamente no teste de Turing. É um ser consciente ao contrário das máquinas. Contudo, este tipo de capacidade assemelha-se muito ao comportamento da inteligência artificial. Há coisas que as máquinas fazem melhor que os seres humanos e memorizar é uma delas.
Os psicólogos Peterson e Seligman procuraram identificar em mais de 3000 anos de história que virtudes eram comuns nas diversas culturas, religiões, tradições e filosofias desenvolvendo o modelo “Character Strenghts and Virtues” que inclui seis domínios: Sabedoria e Conhecimento; Coragem; Humanidade; Justiça; Autodomínio e Transcendência. Qual será o peso que uma capacidade como a memória terá no desenvolvimento destas virtudes?
Que valores e competências serão necessários para formar pessoas autónomas, responsáveis e cidadãos activos de forma inclusiva e atenta à diferença? O que será necessário para promover condições de equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico, tal como consignado no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, documento de referência para a organização do sistema educativo e, consequentemente, para as várias dimensões do desenvolvimento curricular actualmente em vigor? E, neste contexto, qual deverá ser a importância do recurso a capacidades como a memória nos currículos? É capaz de valer a pena comparar com o peso que é efectivamente dado.
Distinguir o essencial do acessório, combater a desinformação e pensar nas questões éticas das soluções, nomeadamente naquelas que são baseadas em tecnologias, é essencial nos dias que correm e não perderá importância no futuro. Nunca foi tão fácil aceder a informação como hoje em dia, ela está à distância de um clique. Mas, informação não é conhecimento! Decorar não é saber!
Raquel Raimundo
Fonte: Público
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