O meu problema não se devia chamar paralisia cerebral, mas paralisia motora, porque paralisia cerebral todos temos às vezes." É assim que Mariana Sapatinha, de 22 anos, explica a sua condição. A jovem, que estuda Artes e sonha ser atriz, ainda faz fisioterapia através do Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, onde foi acompanhada desde bebé. É precisamente no intervalo de uma sessão de fisioterapia que fala com o DN, reclamando os direitos normais de qualquer cidadão. Gostava que o Conservatório mudasse as regras de admissão para que pudesse concorrer, que os obstáculos à mobilidade não fossem tão grandes e que na rua não a abordassem para lhe falar de curas milagrosas ou para lhe dirigir um "coitadinha".
Até porque de coitadinha Mariana não tem nada. Todos os dias trabalha para transpor os obstáculos que lhe são colocados. Uma luta que começou ainda antes de ter completado um ano de vida, quando os pais descobriram que tinha paralisia cerebral e começou a ser seguida no Centro de Reabilitação. "Era a nossa primeira filha, portanto não percebemos nada. Ela ficou nos cuidados intensivos, depois trouxemo-la para casa e lentamente é que a família começou a dizer "ela já se devia sentar, ela já devia aguentar a cabeça", e a partir daí é que nós começámos a desconfiar. Éramos primeiros pais e não tínhamos outro exemplo." A Mariana acabou nos cuidados intensivos porque afinal era maior do que os médicos tinham previsto e a mãe, Carla Frade, "era pequenininha", nas palavras da própria, o que fez que tivesse levado muito tempo a nascer.
A chegada ao centro foi para os pais da Mariana o primeiro passo no caminho certo. "Quando encontramos o caminho ficamos mais seguros e pensamos nas várias etapas que temos a percorrer", recorda Carla Frade. No centro, Mariana foi fazendo, ao longo dos anos, fisioterapia, terapia da fala e terapia ocupacional.
Ao mesmo tempo, acompanhava os pais na companhia de teatro e circo contemporâneo que estes dirigiam. "Fazíamos espetáculos para famílias e a Mariana andou de camarim em camarim, de teatro em teatro, viu a mesma peça vezes sem conta." E a paralisia da Mariana nunca foi entrave. "Era como se fosse uma criança qualquer", garante a mãe.
Carla Frade acabou por sair para dar aulas de dança e mais tarde o marido também deixou o teatro. A vida "aconteceu" e hoje Mariana está a terminar o 12.º ano na Escola Artística António Arroio, o que a mãe descreve como "algo maravilhoso". "É uma escola que dá valor à diferença."
Mariana parece ter herdado a veia artística dos pais. Além de querer seguir teatro, está também a escrever um livro. Ainda que admitindo alguma "preguiça", o que a tem feito arrastar o projeto, a jovem está a escrever histórias que viveu com pessoas importantes da sua vida e vai também partilhando episódios do seu dia-a-dia com paralisia cerebral. O seu objetivo: "Abrir mentalidades."
Não há cura, há trabalho
Todas estas conquistas de Mariana Sapatinha só foram possíveis graças ao acompanhamento precoce que teve por uma equipa especializada. Rosário Costa Lopes, diretora do Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, sublinha que não se pode prometer curas, mas que é possível reabilitar e habilitar os portadores de paralisia cerebral. Como? Com muita terapia, através de atividades como a fisioterapia, a terapia da fala e a ocupacional - em que aprendem a executar tarefas diárias, numa casa simulada - ou a terapia aquática. No centro, os utentes têm ainda acesso a uma sala com técnicas aumentativas e alternativas à comunicação, com soluções tecnológicas para as crianças que não conseguem falar, e ainda o núcleo que recebe os doentes mais pequeninos e mais difíceis.
Crianças que tornam os pais especiais
Aos 14 anos, João Pedro controla a sua cadeira de rodas com mestria usando apenas a cabeça. Além do sorriso rasgado para a câmara, o rosto do jovem do Seixal ilumina-se de forma especial quando vê chegar o irmão mais novo, de 7 anos. Um irmão que ele pediu aos pais, conta Helena Grilo. "Nos primeiros anos sentimo-nos assoberbados pelas terapias e pela atenção que lhe queríamos dar, mas quando o João Pedro entrou para a escola achámos que era o momento para termos um segundo filho", conta.
Agora, os dois fazem corridas, jogam xadrez e brincam como qualquer outro duo de irmãos. E também há zangas e acusações de batotas, principalmente quando o resultado não agrada ao perdedor. Helena Grilo acredita que essa interação "muito especial" entre os irmãos ajudou também o filho mais velho. Já o mais novo adora falar do irmão aos colegas. E a primeira coisa que reparou no refeitório novo na escola, a seguir à Páscoa, foi que tinha uma rampa de acesso para cadeira de rodas.
João Pedro nasceu sem respirar e terá sido essa a causa da sua paralisia cerebral. "Não era algo com que estivéssemos a contar, mas mãos à obra. Teve de ser um desafio, continua a ser um desafio. Vivemos um dia de cada vez e a apreciar também as alegrias que ele nos dá, porque não são só situações desagradáveis que nascem com o nascimento de uma criança especial. Também há outras coisas que nós vamos descobrindo até sobre nós próprios, que temos mais força do que realmente imaginamos que teríamos. Foi um processo um bocadinho agridoce, partes dolorosas, mas também muito recompensadoras, dar mais valor às pequenas coisas que ele fazia, aos sorrisos, fomos ganhando força", sublinha Helena Grilo.
João Pedro não fala. Usa o computador para comunicar, embora os pais e o irmão já lhe adivinhem muito do que quer dizer. Chegou ao Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian quando tinha 16 meses e foi aí que aprendeu a comunicar. As técnicas trabalharam com ele o reconhecimento de símbolos e antes de ensinarem a mãe - primeiro as crianças têm de estar à vontade com o sistema e só depois os pais aprendem a comunicar com eles - já ele contava coisas do fim de semana e o que queria de presentes. No fim, "foi muito gratificante saber que o meu filho tinha milhões de recados para me dar", conta Helena.
Desde que entrou para a escola que João Pedro já só é acompanhado à distância. "Com muito carinho, as pessoas aqui do centro também veem o que é que ele precisa a nível de equipamentos e produtos de apoio." Tudo graças a um acompanhamento desde cedo e também às boas capacidades cognitivas que desde logo lhe foram diagnosticadas. Na escola tem feito o percurso normal e está agora no 8.º ano.
Para poder seguir de perto este percurso do filho, Helena também decidiu mudar de vida. Engenheira civil, quando ficou sem trabalho na empresa em que estava, decidiu procurar um emprego diferente que lhe permitisse gerir melhor os horários. É consultora imobiliária e faz avaliações de casas. "Posso estar mais disponível para o meu filho, é o ideal para mim."
Hoje vê o filho mais velho ser uma criança como qualquer outra. Até nos interesses: "Adora ajudar animais abandonados e participa nos grupos de ajuda, arranja donos para os animais e ele próprio até já adotou uma cadelinha." Cadelinha essa que está na avó e que João Pedro visita todas as sextas-feiras e para onde estava desejoso de ir, depois da entrevista.
Fonte: DN
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