O pleno exercício dos direitos da pessoa com condição de deficiência é uma longa e íngreme escadaria. Ao subi-la podemos olhar para os degraus que já foram transpostos e ficar reconfortados com o que que fizemos ou olhar para os degraus que faltam subir e ficar (talvez) desanimados. Por vezes parece-nos que o patamar onde chegamos é já o fim do caminho e só uma segunda impressão nos lembra que há mais escadas para subir.
Lembro-me que, há alguns anos, fui a um congresso a uma cidade do Sul de Espanha. Era um congresso sobre desporto paralímpico e a cidade assumia-se como anfitriã orgulhosa de uma cidade que tinha abolido as barreiras arquitetónicas e era portanto uma cidade completamente acessível para pessoas em cadeira de rodas e outras dificuldades de locomoção. Quando cheguei ao fantástico auditório onde se ia passar o congresso, logo vi todo o cuidado que tinha sido posto na acessibilidade. Estávamos – parecia – num micromundo sem barreiras. Mas… quando subi para o palco reparei que a pessoa que usava cadeira de rodas e me fazia companhia na mesa de comunicações tinha entrado por outro lado. Perguntei: “Por onde entrou?” e ele respondeu “Por uma porta que há por trás do palco”. Mas então, uma cidade tão acessível, um auditório tão acessível, destina o acesso das pessoas com cadeiras de rodas pelas traseiras do edifício? Talvez as pessoas que conceberam este auditório tenham pensado que as pessoas com deficiência vêm cá para ouvir, mas não para falar e, por isso, não valorizaram a acessibilidade ao palco.
Este episódio levanta-nos uma reflexão importante e que se prende com o conceito que temos sobre a participação das pessoas com deficiência na sociedade. Muitas vezes esta reflexão só nos leva a considerar que estas pessoas podem ser participantes passivos, espectadores, assistentes do que se passa. Não é imediatamente concebível que estas pessoas possam assumir a palavra, a conceção, assumir a liderança de palavras e projetos. Lembro o grande choque que se passou no Reino Unido quando em 1997 David Blunkett, um homem cego congénito, se tornou Secretário de Estado da Educação e do Emprego no Governo Trabalhista de Tony Blair. Não era politicamente correto uma oposição frontal mas soaram muitos silêncios e “vamos ver” à volta desta nomeação. Um cargo que foi, no seu final, unanimemente reconhecido como tendo sido exercido com grande qualidade.
Hoje vivemos em Portugal momentos inéditos sobre a visibilidade e protagonismo de pessoas com condições de deficiência na nossa política e na nossa governação. Lembro o deputado Jorge Falcato e a Secretária de Estado da Inclusão de Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes. Estas pessoas assumem um protagonismo que vai para além do mundo em que muitas vezes queremos isolar as pessoas com condições de deficiência. Estas pessoas representam muitas outras e assumem sem problemas a sua função de tratar e representar todos os seus concidadãos tenham deficiência ou não. Estas pessoas, pela afirmação da sua cidadania, lembram-nos que podemos estar mais próximos do cimo desta escadaria e que os direitos das pessoas com deficiência estão indissoluvelmente ligados à afirmação e concretização dos direitos de todos os cidadãos. Por tudo isto só nos podemos sentir orgulhosos por termos cidadãos de tanta qualidade a nos representarem e desejar-lhes as maiores felicidades para o exercício dos seus cargos.
E vamos subindo a escadaria.
David Rodrigues
Fonte: Revista Plural&Singular, p. 39
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