Na freguesia mais pobre da Madeira e uma das mais carenciadas do país, onde 92% dos alunos têm Ação Social Escolar e a internet não faz parte das prioridades da maioria das famílias, existe algo supreendente. Numa vila enterrada num vale profundo, onde a única ligação com o resto do mundo faz-se por um túnel com quase 2,5 quilómetros, existe uma escola onde cabem todos os sonhos.
A Escola Básica 1,2,3 do Curral das Freiras teve, em 2015, a terceira melhor média nacional no exame de Português do 9.º ano. Os 4,4 de média – a escala vai até 5 – colocaram este estabelecimento de ensino como a melhor escola pública neste ranking. No exame de Matemática, embora menos brilhantes, os resultados foram igualmente surpreendentes. Os alunos do 9.º ano tiveram uma média de 3,6, colocando a escola no 12.º lugar do ranking entre as públicas e dentro das 100 melhores em termos gerais.
Tudo isto numa escola com pouco mais de 300 alunos, onde metade dos professores são contratados, que fica esquecida no meio do maciço central da ilha da Madeira, servindo uma população que ronda as 1500 almas. “Esta escola tem 150 professores colocados, mas apenas 74 estão cá a lecionar. São poucos os que querem vir para cá trabalhar, por causa do isolamento, do frio… e eu compreendo”, explica Joaquim Sousa, diretor da escola desde que esta abriu as portas, há seis anos.
É um estabelecimento muito particular. Vai da creche até ao 12.º ano, e Américo Sá, 18 anos, é o aluno mais antigo. Quer ser militar de carreira. Ou queria. “Agora já não sei bem”, conta (...), sorrindo com o título de ‘aluno número 1’ com que o director da escola o apresenta. “É bom estudar aqui. Todos se conhecem, somos amigos, temos boas condições e sentimos que os professores acreditam em nós”, sintetiza, cruzando os braços sobre a mesa do Conselho Executivo, onde também cabem André Santos e Daniel Caires, ambos a frequentar o 9.º ano.
André é o melhor aluno da escola, mas nem isso o livra de uma espécie de raspanete do professor. “Não deixes o queixo caído sobre as mãos, não inspira confiança. Se colocares a mão assim, os outros vão ver que estás atento”, aconselha Joaquim Sousa, desenhando um ‘L’ com os dedos de uma mão, junto à boca. André que ser médico. Desejo raro no Curral das Freiras, onde a esmagadora maioria da população vive da agricultura.
“Foi isso que quis desmistificar, quando cá cheguei. A ideia de que filho de lavrador tem de ser lavrador”, diz o diretor da escola, revelando o discurso que faz aos professores no início de cada ano letivo. “Estes alunos têm sonhos, têm direito a ter todos os sonhos do mundo e cabe a nós ajudá-los”, conta o diretor, numa espécie de adaptação da Tabacaria, de Álvaro de Campos.
Até agora, os sonhos de Joaquim Sousa e da equipa que lidera têm-se concretizado. Quando chegou, a escola ficou em 1207 no ranking, e estabeleceu logo metas: colocar a escola entre as melhores da Madeira, e reposicioná-la depois a nível nacional. “Disse que queria tornar a escola a melhor do país, se calhar estiquei-me um pouco…”, diz sorrindo alto, sentado junto a uma parede forrada de recortes de jornais onde a 1,2,3 do Curral das Freiras surge em destaque.
Foi feita uma pequena revolução. O grau de exigência foi elevado – “porque estes alunos, pelo contexto social onde vivem, só têm uma oportunidade” -, com a componente saber (conhecimento da matéria) a passar a contar 90% contra os 10% do estar (comportamento, assiduidade, participação). Antes, a proporção era de 60/40, mas esta exigência não significa uma pressão acrescida sobre os alunos.
Foram ajustes simples. A escola não tem campainha. A que existia avariou, e não havia dinheiro para uma nova. Agora que há, continua sem haver toques. “Há uma maior responsabilização, e acabaram-se as tolerâncias”, explica. As turmas são pequenas, por falta de alunos e todas têm apoio inserido no horário letivo. Não há trabalhos para casa – “os miúdos têm de ter vida para além da escola” -, e os métodos de ensino são adaptados a cada um deles. “Nem todos podem ser doutores, mas todos podem e devem sair daqui preparados para enfrentar o mercado de trabalho”, argumenta, enumerando as dificuldades que os alunos enfrentam para vir à escola. “São verdadeiros heróis.”
Daniel Caires é um deles. Está no 9.º ano e todos os dias sai de casa às 6h30 e só regressa já perto das oito da noite. Vive em Câmara de Lobos, e quis fugir às escolas do concelho. “Sabia que lá não ia ter muitas hipóteses de sucesso, o ambiente não ia ajudar”, diz ajeitando os óculos de massa escuros. Daniel, ou Dani, como todos os chamam nos corredores da escola, foi aconselhado por um primo, que frequenta a escola. “Queria ter oportunidade de estudar num bom ambiente, e não me arrependi”, garante, dizendo que vale a pena o sacrifício diário e as horas passadas no autocarro.
A escola, explica Joaquim Sousa, adapta-se às necessidades dos alunos. Numa vila com uma orografia difícil, a única forma dos jovens irem à escola é de autocarro. “Nós alteramos os horários, adaptando-os às horas dos autocarros, tendo em conta as necessidades dos alunos”, diz o diretor. Por isso, a taxa de abandono é reduzida, e quando acontece é por motivos de emigração, devido a elevada taxa de desemprego do Curral das Freiras. Mesmo agora, que acabou o 2.º período e começam as férias, a biblioteca e a sala de informática são sempre um local de encontro para os alunos. “Numa terra onde 80% não tem livros em casa e mais de metade não tem computador ou internet, é nosso dever dar isso”.
“Vamos buscar os alunos a casa se for preciso”, garante. Já aconteceu. Em 2010, quando a ilha foi assolada por um temporal que matou mais de trinta pessoas, e a vila ficou uma semana isolada, Joaquim Sousa e Marco Melo, presidente do Conselho da Comunidade Educativa, foram com o próprio carro buscar os alunos a casa. “Queríamos mostrar que a escola, principalmente naqueles dias terríveis, era um lugar seguro”, conta Marco Melo. E é. Já aconteceu os alunos terem que passar lá a noite, devido ao mau tempo que tornavam intransitáveis as pequenas estradas que serpenteiam o vale. Américo Sá, não esconde um sorriso cúmplice ao recordar a experiência. “Foi engraçado”, conta.
Todos riem. Até Albany Rodrigues, que chegou há dois anos da Venezuela, esboça uma gargalhada. Com carências a português, e tímida por natureza, Albany foi alvo de uma atenção especial, que já começou a dar frutos. “Fui a melhor aluna de geografia da Madeira”, diz, baixinho. “Tentamos que ela encontrasse aqui um lugar seu, depois de uma mudança tão radical como é a de mudar de país”, explica o diretor da escola.
Também Dina Ascenção sempre sentiu a escola como sua. Esteve ali cinco “bons” anos, e hoje, a estudar no Funchal, é um exemplo para os outros alunos. Fez parte do 9.º ano que alcançou a terceira melhor média nacional a Português, mas foi a Matemática que mais se destacou. Foi a única, na Madeira, a ter 100% no exame nacional. “No meu último ano nesta escola, desconhecida ou até mesmo desprezada por muitos, eu e a minha turma alcançámos um excelente lugar entre as escolas públicas nos exames de 9º ano”, recorda, dizendo que este resultado mostra que “não interessa de onde viemos, mas sim onde nos leva a nossa persistência”.
Joaquim Sousa abana a cabeça que sim. Que nada é impossível, e que os alunos têm o direito de sonhar.
A Escola Básica 1,2,3 do Curral das Freiras teve, em 2015, a terceira melhor média nacional no exame de Português do 9.º ano. Os 4,4 de média – a escala vai até 5 – colocaram este estabelecimento de ensino como a melhor escola pública neste ranking. No exame de Matemática, embora menos brilhantes, os resultados foram igualmente surpreendentes. Os alunos do 9.º ano tiveram uma média de 3,6, colocando a escola no 12.º lugar do ranking entre as públicas e dentro das 100 melhores em termos gerais.
Tudo isto numa escola com pouco mais de 300 alunos, onde metade dos professores são contratados, que fica esquecida no meio do maciço central da ilha da Madeira, servindo uma população que ronda as 1500 almas. “Esta escola tem 150 professores colocados, mas apenas 74 estão cá a lecionar. São poucos os que querem vir para cá trabalhar, por causa do isolamento, do frio… e eu compreendo”, explica Joaquim Sousa, diretor da escola desde que esta abriu as portas, há seis anos.
É um estabelecimento muito particular. Vai da creche até ao 12.º ano, e Américo Sá, 18 anos, é o aluno mais antigo. Quer ser militar de carreira. Ou queria. “Agora já não sei bem”, conta (...), sorrindo com o título de ‘aluno número 1’ com que o director da escola o apresenta. “É bom estudar aqui. Todos se conhecem, somos amigos, temos boas condições e sentimos que os professores acreditam em nós”, sintetiza, cruzando os braços sobre a mesa do Conselho Executivo, onde também cabem André Santos e Daniel Caires, ambos a frequentar o 9.º ano.
André é o melhor aluno da escola, mas nem isso o livra de uma espécie de raspanete do professor. “Não deixes o queixo caído sobre as mãos, não inspira confiança. Se colocares a mão assim, os outros vão ver que estás atento”, aconselha Joaquim Sousa, desenhando um ‘L’ com os dedos de uma mão, junto à boca. André que ser médico. Desejo raro no Curral das Freiras, onde a esmagadora maioria da população vive da agricultura.
“Foi isso que quis desmistificar, quando cá cheguei. A ideia de que filho de lavrador tem de ser lavrador”, diz o diretor da escola, revelando o discurso que faz aos professores no início de cada ano letivo. “Estes alunos têm sonhos, têm direito a ter todos os sonhos do mundo e cabe a nós ajudá-los”, conta o diretor, numa espécie de adaptação da Tabacaria, de Álvaro de Campos.
Até agora, os sonhos de Joaquim Sousa e da equipa que lidera têm-se concretizado. Quando chegou, a escola ficou em 1207 no ranking, e estabeleceu logo metas: colocar a escola entre as melhores da Madeira, e reposicioná-la depois a nível nacional. “Disse que queria tornar a escola a melhor do país, se calhar estiquei-me um pouco…”, diz sorrindo alto, sentado junto a uma parede forrada de recortes de jornais onde a 1,2,3 do Curral das Freiras surge em destaque.
Foi feita uma pequena revolução. O grau de exigência foi elevado – “porque estes alunos, pelo contexto social onde vivem, só têm uma oportunidade” -, com a componente saber (conhecimento da matéria) a passar a contar 90% contra os 10% do estar (comportamento, assiduidade, participação). Antes, a proporção era de 60/40, mas esta exigência não significa uma pressão acrescida sobre os alunos.
Foram ajustes simples. A escola não tem campainha. A que existia avariou, e não havia dinheiro para uma nova. Agora que há, continua sem haver toques. “Há uma maior responsabilização, e acabaram-se as tolerâncias”, explica. As turmas são pequenas, por falta de alunos e todas têm apoio inserido no horário letivo. Não há trabalhos para casa – “os miúdos têm de ter vida para além da escola” -, e os métodos de ensino são adaptados a cada um deles. “Nem todos podem ser doutores, mas todos podem e devem sair daqui preparados para enfrentar o mercado de trabalho”, argumenta, enumerando as dificuldades que os alunos enfrentam para vir à escola. “São verdadeiros heróis.”
Daniel Caires é um deles. Está no 9.º ano e todos os dias sai de casa às 6h30 e só regressa já perto das oito da noite. Vive em Câmara de Lobos, e quis fugir às escolas do concelho. “Sabia que lá não ia ter muitas hipóteses de sucesso, o ambiente não ia ajudar”, diz ajeitando os óculos de massa escuros. Daniel, ou Dani, como todos os chamam nos corredores da escola, foi aconselhado por um primo, que frequenta a escola. “Queria ter oportunidade de estudar num bom ambiente, e não me arrependi”, garante, dizendo que vale a pena o sacrifício diário e as horas passadas no autocarro.
A escola, explica Joaquim Sousa, adapta-se às necessidades dos alunos. Numa vila com uma orografia difícil, a única forma dos jovens irem à escola é de autocarro. “Nós alteramos os horários, adaptando-os às horas dos autocarros, tendo em conta as necessidades dos alunos”, diz o diretor. Por isso, a taxa de abandono é reduzida, e quando acontece é por motivos de emigração, devido a elevada taxa de desemprego do Curral das Freiras. Mesmo agora, que acabou o 2.º período e começam as férias, a biblioteca e a sala de informática são sempre um local de encontro para os alunos. “Numa terra onde 80% não tem livros em casa e mais de metade não tem computador ou internet, é nosso dever dar isso”.
“Vamos buscar os alunos a casa se for preciso”, garante. Já aconteceu. Em 2010, quando a ilha foi assolada por um temporal que matou mais de trinta pessoas, e a vila ficou uma semana isolada, Joaquim Sousa e Marco Melo, presidente do Conselho da Comunidade Educativa, foram com o próprio carro buscar os alunos a casa. “Queríamos mostrar que a escola, principalmente naqueles dias terríveis, era um lugar seguro”, conta Marco Melo. E é. Já aconteceu os alunos terem que passar lá a noite, devido ao mau tempo que tornavam intransitáveis as pequenas estradas que serpenteiam o vale. Américo Sá, não esconde um sorriso cúmplice ao recordar a experiência. “Foi engraçado”, conta.
Todos riem. Até Albany Rodrigues, que chegou há dois anos da Venezuela, esboça uma gargalhada. Com carências a português, e tímida por natureza, Albany foi alvo de uma atenção especial, que já começou a dar frutos. “Fui a melhor aluna de geografia da Madeira”, diz, baixinho. “Tentamos que ela encontrasse aqui um lugar seu, depois de uma mudança tão radical como é a de mudar de país”, explica o diretor da escola.
Também Dina Ascenção sempre sentiu a escola como sua. Esteve ali cinco “bons” anos, e hoje, a estudar no Funchal, é um exemplo para os outros alunos. Fez parte do 9.º ano que alcançou a terceira melhor média nacional a Português, mas foi a Matemática que mais se destacou. Foi a única, na Madeira, a ter 100% no exame nacional. “No meu último ano nesta escola, desconhecida ou até mesmo desprezada por muitos, eu e a minha turma alcançámos um excelente lugar entre as escolas públicas nos exames de 9º ano”, recorda, dizendo que este resultado mostra que “não interessa de onde viemos, mas sim onde nos leva a nossa persistência”.
Joaquim Sousa abana a cabeça que sim. Que nada é impossível, e que os alunos têm o direito de sonhar.
Fonte: Público
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