quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

ONU está preocupada com "elevados níveis de privação" das crianças em Portugal

O comité de 18 peritos independentes alerta para “o preço que está a ser pago” pelas famílias portuguesas com os cortes no investimento público nas áreas sociais, quer ver reduzido o impacto das restrições financeiras nos cuidados de saúde e bem-estar das crianças e defende que devem ser “travados novos cortes no sector da Educação”. A ONU exorta ainda o Governo português a definir “objetivos orçamentais estratégicos” para a infância.

A crise económica e as políticas de austeridade dos últimos anos reduzem as perspectivas de Portugal vir a cumprir a Convenção dos Direitos das Crianças em Portugal, um dos mais de 190 Estados signatários que, regularmente, se submetem a uma avaliação dos avanços realizados na aplicação dos princípios desse tratado de 1990.

Na sua mais recente avaliação, publicada esta quarta-feira, o comité de 18 peritos independentes alerta para “o preço que está a ser pago” pelas famílias com os cortes no investimento público nas áreas sociais, em consequência da crise, e lamenta que as crianças em Portugal sejam expostas ao “risco crescente” de “pobreza” e às menores garantias dos direitos contidos na Convenção – como o acesso aos cuidados de saúde, ao ensino e à protecção social.

Por isso, além de apelar a Portugal para que continue a harmonizar as suas leis à Convenção, exorta o Governo português a definir “objetivos orçamentais estratégicos” para a infância e a "ter em vista os direitos das crianças na elaboração do Orçamento do Estado". Em concreto, defende "alocações claras para as crianças em setores relevantes e agências, com indicadores especiais [relativos ao bem-estar das crianças] e um sistema de deteção". 

No documento que deve agora ser transmitido ao Presidente e à Assembleia da República, aos ministérios envolvidos nas questões apontadas, ao Supremo Tribunal e às autarquias, o comité considera pois imperativos os esforços para sustentar o investimento social e a proteção das famílias numa perspectiva “equitativa” e sempre na lógica de dar a prioridade às crianças. 

Ao mesmo tempo que acolhe, por exemplo, a implementação do Programa de Emergência Social, em 2011, pelo Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, para minimizar o impacto social da crise na vida das famílias mais vulneráveis, ou a extensão do programa alimentar às escolas, com a criação de uma rede de cantinas sociais, salienta a sua preocupação perante “os elevados níveis de privação entre as crianças” e o “impacto negativo” da austeridade na vida das famílias.

Os 18 especialistas do comité, que eleitos pelos Estados (para mandatos de quatro anos), recomendam ao Estado português não limitar mas reforçar os apoios às famílias, como o abono de família, numa altura em que a tendência tem sido inversa. Segundo dados do Observatório das Famílias e Políticas de Família, publicados no fim de 2013, meio milhão de crianças perderam o direito ao abono de família entre 2009 e 2012, estando Portugal abaixo da média europeia em despesas do Estado para apoio às famílias.

Privilegiar a adoção

Os riscos que representam os crescentes níveis de pobreza voltam a ser referidos no capítulo dedicado ao quadro familiar, sendo a recomendação do comité no sentido de o Estado apoiar as famílias mais necessitadas a garantirem o bom desempenho das suas responsabilidades educativas.

O documento salienta a importância deste ponto, para limitar o número de crianças a crescer fora da família. E nos casos em que tal não pode ser evitado, pede esforços para limitar a colocação em instituições de crianças em risco e favoreça a colocação em famílias adotivas. Os peritos acolhem a aplicação em 1999 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo mas estão preocupados com “o baixo número de famílias de adoção e de colocação de crianças em famílias” e o “ainda generalizado recurso à institucionalização, em particular, de crianças mais pequenas”.

O número de crianças a viver em instituições aumentou, sublinham, e isso num contexto em que o sistema de cuidados alternativos “piora no contexto da atual crise”. O comité apela a um maior acompanhamento e integração dos jovens que deixam as instituições e ao apoio para garantir uma vida independente, através do ensino ou formação profissional, e da garantia de condições de habitação e emprego.

O comité, que esta quarta-feira publicou as suas conclusões sobre as avaliações feitas, não só a Portugal mas também à República Democrática do Congo, Iémen, Vaticano, Rússia e Alemanha, gostaria, entre outras coisas, de ver reduzido o impacto das restrições financeiras nos cuidados de saúde e bem-estar das crianças e de serem “travados novos cortes no sector da Educação”. Melhorar a rede de creches ou identificar causas de um abandono escolar precoce, para o conter, são outras das recomendações do comité que, nessa tentativa de perceber as causas desse abandono, recomenda que se redobrem esforços para garantir o direito das crianças a serem escutadas.

Castigos corporais

A proibição dos castigos corporais, introduzida no Código Penal de 2007, foi acolhida pelo comité como um exemplo a seguir para “garantir que a legislação nacional” se torne “totalmente compatível com os princípios” da Convenção, embora os peritos lamentem que esta seja ainda uma prática corrente na família e aceite na sociedade.

Ao mesmo tempo que, de forma global, renova o apelo antes feito ao Estado para tornar a legislação portuguesa totalmente compatível com os princípios da convenção, o comité espera, em pontos mais concretos, continuar a reconhecer esforços de Portugal para limitar o trabalho infantil, combater a violência doméstica contra as mulheres e as crianças, garantir a ausência de discriminações relativas a filhos de imigrantes, promover os direitos humanos da crianças com deficiências, entre outras coisas.

E reitera a sua preocupação com “o número de acidentes”, de carro nas estradas, por queda ou por afogamento nas piscinas. Nesse sentido, recomenda novas medidas de prevenção e garantia da segurança infantil, com a imposição do uso de cintos de segurança e de cadeirinhas apropriadas ao peso e à altura das crianças, e um reforço do quadro legal de segurança das crianças em piscinas, entre outras coisas, através do uso de redes que respeitem as normas europeias existentes.

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