terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Entrevista com David Justino

O ex-ministro da Educação e atual presidente do Conselho Nacional de Educação, David Justino, considera que as escolas na atualidade estão muito mais orientadas para obter melhores resultados das aprendizagens do que estavam há dez anos atrás. Em entrevista ao Ensino Magazine, respondida por e-mail, fala também das provas de ingresso à profissão docente, dos resultados obtidos por Portugal no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos - OCDE) e de se encontrarem soluções para que nenhum aluno se veja obrigado a abandonar os seus estudos por razões estritamente económicas.

David Justino aborda ainda a reorganização da rede de ensino superior. Na sua perspetiva está na hora de sacrificar alguns cursos para salvar algumas instituições. Mas lembra que devem também existir "medidas de discriminação positiva, permitindo que instituições que desempenham um papel fundamental no desenvolvimento das regiões periféricas, não sejam «varridas» do sistema".

Concorda com a ideia de que um dos maiores desafios da educação em Portugal é a efetivação da escolaridade obrigatória até ao 12.º, com resultados positivos (mais sucesso escolar e menos abandono)?
De uma maneira geral e como princípio concordo. O recurso a uma medida coerciva como é a escolaridade obrigatória é sempre um derradeiro passo que deverá ser devidamente ponderado. Se a universalização do ensino secundário fosse possível sem esse recurso seria bem melhor. Porém, a história da evolução do sistema de ensino em Portugal revela-nos o efeito positivo da ação do Estado na definição de metas de escolarização. Cada passo dado tem conduzido a níveis de escolarização mais avançados e tem contribuído para uma indução da qualificação da população que de outra forma não teria sido atingida. O argumento do abandono e do insucesso escolares, resultante de obrigar os alunos a frequentarem a escola contra a sua vontade, é um mau argumento, porque em alternativa continuaríamos a ter alguns setores da população que nem sequer concluiriam o primeiro ciclo.

A escola pública está a viver momentos difíceis. O acesso ao ensino para todos, como hoje o conhecemos, pode estar em risco?
Não creio! Tal como deveremos sempre evitar os momentos difíceis, teremos primeiro de evitar os momentos de euforia e deslumbramento, para que não voltemos a ter momentos difíceis. A ideia de que toda a despesa em educação é investimento não é verdadeira. Para futuro, sempre que quisermos tomar uma medida de qualificação do sistema de ensino deveremos pensar muito a sério sobre qual é a relação entre custos e retornos. Não chega ter boas ideias e boa vontade, é necessário planear com grande rigor a evolução do sistema de ensino e saber até que ponto os investimentos realizados se estão a traduzir em melhor ensino e melhores aprendizagens. Porque, se não for com esse objetivo, nem sempre valerá a pena fazer alguns investimentos.

O Ministério da Educação obrigou os professores com menos de 5 anos de serviço a realizarem um exame de admissão à profissão. Faz sentido esta prova na sua opinião?
Tudo depende do contexto de profissionalização em que se enquadre essa prova e dos objetivos que se queiram atingir. Por exemplo, se o principal objetivo da prova é de seriação dos candidatos a professores, poderá ser aceitável, se é de exclusão, talvez não o seja. Se o objetivo é privilegiar o mérito e a qualidade da formação inicial, poderei estar de acordo, se é um mero ritual de despiste dos candidatos, talvez não tanto. Uma coisa é certa, o Estado tem o direito e o dever de escolher os melhores professores para as escolas públicas. A escola pública, se quer ser valorizada e reconhecida como uma escola de qualidade tem de ter os melhores professores. Enquanto esse objetivo não for conseguido ficaremos sempre aquém do que possível fazer. Se queremos defender uma escola pública de qualidade alguma coisa teremos de fazer no recrutamento e seleção de professores, com prova ou sem prova.

Os resultados do PISA foram muito positivos para Portugal e refletem todo um trabalho realizado num passado recente. Como é que os analisa?
O problema é saber o que entende por "passado recente". Quão recente? Aquilo que sabemos da evidência proporcionada pela investigação é que os resultados em educação demoram muito tempo a ser construídos. Por outro lado, julgo que estamos demasiado centrados nas políticas públicas, quando há variáveis estruturais que são bem mais importantes. Dou-lhe um exemplo: não tenho grandes dúvidas que o principal contributo para a melhoria de resultados tem a ver com os níveis de escolarização dos pais. Hoje a geração dos pais das crianças que estão no sistema de ensino é muito mais escolarizada que a geração anterior. Só esse facto explica uma boa proporção da melhoria dos resultados. Segundo exemplo: muito provavelmente, temos professores melhor preparados (em média ...) do que tínhamos há 15 ou 20 anos atrás. As escolas na atualidade estão muito mais orientadas para obter melhores resultados das aprendizagens do que estavam há dez anos atrás. Hoje nota-se que emerge uma outra cultura escolar que olha para os resultados como um indicador fundamental para qualificar as aprendizagens. Por isso, se considerarmos estes três fatores, veremos que há alterações que marcam os últimos 10 anos que são fundamentais para percebermos os resultados obtidos.

Um pouco por todo o país, foram criados os chamados mega-agrupamentos de escolas. Em que medida é que estas estruturas podem melhorar, ou não, o ensino em Portugal?
Os agrupamentos de escolas existem desde finais dos anos 90. Generalizaram-se a partir de 2003 e alargaram-se às escolas secundárias a partir de 2008. Mais do que ganhos de eficiência na gestão administrativa ou de racionalidade financeira, o maior potencial dos agrupamentos será, a prazo, de natureza pedagógica. Nesta perspetiva a dimensão dos agrupamentos por si só pouco me diz. Julgo que é mais importante o que eles representam de articulação dos diferentes níveis de ensino, de superação de barreiras entre culturas profissionais que vivem de costas viradas, de reorientação do focus da ação educativa para os trajetos escolares dos alunos e não uma segmentação correspondente aos diferentes ciclos de ensino. Temos de "desconfinar" as diferentes lógicas de ciclo e integrar a ação educativa em torno do aluno, da sua progressão, do seu acompanhamento e do seu sucesso. Os agrupamentos potenciam essa verticalização pedagógica que é bem mais importante que os eventuais ganhos de racionalização dos recursos.

No último concurso nacional de acesso ao ensino superior mais de 40% dos alunos que concluíram o secundário não se candidataram. Na sua perspetiva isto reflete o quê: desmotivação quanto ao futuro? falta de dinheiro das famílias?
Não tenho informação privilegiada sobre o problema real que descreve. Julgo que com base num inquérito bem elaborado poderíamos ter ideias mais claras e uma melhor identificação das causas. Sem isso só poderemos especular e alinhar nas explicações mais fáceis. De certo, sabemos que as razões que apontou terão alguma importância, a dificuldade está em conhecermos outras razões e qual a hierarquia da importância de cada uma delas. Eu prefiro ser comedido nessas interpretações imediatas, não deixando de reconhecer que as dificuldades crescentes das famílias, em especial em alguns sectores da classe média, são um factor considerável para explicar o fenómeno. Teremos de encontrar soluções que nos garantam que nenhum aluno se veja obrigado a abandonar os seus estudos por razões estritamente económicas. Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar tão elevado potencial de capital humano, mas, por outro lado, também importa criar oportunidades de integração desses jovens na vida ativa. Se ao aumento da escolarização superior não corresponder um aumento das oportunidades de inserção no mercado de trabalho então estamos a provocar uma frustração generalizada como a que sentimos em muitos jovens que depois de terminados os seus cursos são obrigados a emigrar para conseguirem aceder a um emprego ajustado às suas qualificações.

De que modo se pode inverter esta tendência?
Só há uma forma: mais investimento privado, mais crescimento económico para podermos criar mais postos de trabalho qualificado de forma a absorver esse capital humano. Duvido que a administração pública e o setor público tenham condições, nos próximos anos, de poder suprir esse esforço de investimento. Se voltarmos a cair nessa política, daqui a alguns anos voltaremos a enfrentar as dificuldades por que passamos atualmente. É fundamental atrair investimento para atividades de elevado valor acrescentado que exijam níveis de qualificação do trabalho mais elevados. Se voltarmos a um modelo em que a maior procura incide sobre mão-de-obra desqualificada, então será bem pior. Temos de escolher entre formar licenciados para serem caixas de supermercado - por mais respeitosa que seja a atividade - ou especialistas em empresas rentáveis e orientadas para a produção de bens e serviços transacionáveis.

O atual Ministério da Educação quer redefinir a rede de ensino superior, falando em fusões e agregações entre instituições, nalguns casos de sistemas diferentes. Faz sentido extinguir instituições, por exemplo no interior do país?
Temos de ser ponderados sobre as eventuais soluções conducentes ao reordenamento da rede de oferta de ensino superior. Andamos há mais de dez anos a falar sobre o problema, mas por uma ou outra razão, pouco ou nada se fez. A situação está a tornar-se insustentável. Esse tipo de soluções, feitas com tempo e em concertação com as diferentes instituições, são sempre mais sustentáveis do que quando realizadas à pressa e sob a pressão da "austeridade". Os responsáveis dos estabelecimentos de ensino superior têm de se sentar à mesa e acordarem as melhores soluções para o seu desenvolvimento. Caso não o façam, a solução virá de cima e, na maior parte dos casos, não será necessariamente a melhor. Este estratagema de adiar indefinidamente as soluções não creio que seja o melhor.
Ainda estamos a tempo, mas já bem perto do "prazo de validade", de sacrificar alguns cursos para salvar algumas instituições. Se não o fizerem, a muito curto prazo, terão de fechar algumas das instituições. O país não suporta o financiamento da atual estrutura de oferta de ensino superior e não poderá suportar que uma parte dos cursos, irresponsavelmente, estejam a encaminhar os seus licenciados diretamente para o desemprego. Este é que é o problema.

A reorganização da rede da oferta formativa e dos números clausus não poderia ser uma solução?
Poderemos começar por aí, mas não podemos ficar por aí. Teremos de avançar, mais tarde ou mais cedo, para um modelo de financiamento competitivo, de forma a diferenciar a qualidade e o desempenho dos diferentes cursos e das diferentes instituições.
No atual modelo estamos a sacrificar as instituições com maior potencial de crescimento e competitividade, para mantermos os níveis de ineficiência das instituições mais obsoletas. Porém, há um princípio que nunca poderá ser esquecido: o da solidariedade territorial. Têm de existir medidas de discriminação positiva, permitindo que instituições que desempenham um papel fundamental no desenvolvimento das regiões periféricas, não sejam "varridas" do sistema. Não podemos ser insensíveis a esse princípio, mas também não poderemos deixar de exigir maior racionalidade na rede de ofertas. É para isso que serve a política: encontrar soluções concertadas e compromissos que permitam manter a coesão territorial e ao mesmo tempo valorizar os nichos de competência que ainda existem nessas regiões.

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